sexta-feira, 28 de novembro de 2008

No Mundo da Escrita Criativa, IV


Entrou na sala e antes de qualquer actividade, começaram a falar da Cais Letras e da possibilidade de enviar um texto, em que o tema fosse Festas/Festejos. Desta vez a aula começou com oito dos dez elementos (um chegaria atrasado, o outro faltaria à última aula do curso).
A tarefa de relaxamento consistia em desenhar um contorno de uma mão com uma ponta de feltro, numa folha de papel e depois à medida que ouviam a leitura de um poema de Sophia de Mello Breyner deviam escrever palavras que lhes despertassem a atenção. Alguém foi escrevendo:


- Sol - Planícies - Peso - Mundo
- Lua - Vida - Vento - Mar
- Florestas verdes - Brancas - Divina - Paz
- Elástica - Azul - Ruas - Escura
- Carne - Terra - Amor + forte - Sangue
- Sujas - Regresso - Cinza - Areia
- Paredes - Claridade - Asa - Alma
- Miragens - Vida Secreta - Montanhas - Mãos
- Coisa - Oiro
- Nevoeiro - Muros
- Verdade - Sombra - Luz - Fugitiva
- Ar - Sabor


- Têm dez minutos para este exercício. Escrevam várias frases ou uma frase que depois se converta num pequeno texto, em que existam algumas dessas palavras e comece:

Nas linhas da mão escrevo...

Palavras soltas e fugitivas, que me trazem inúmeras recordações de luz e escuridão, de prazer ou obrigação.
Leio vento, mar, chuva, lua, florestas, nevoeiro e areia, cores de oiro.
Leio terra, quebra, peso, muros, cores de cinza e prata.
Não sei o que escrever, mas sei o que sentir. A felicidade de escrever por prazer, a alegria por ouvir música, canetas a riscar o papel, palavras a ganharem corpo e substância sempre que sejam de tolerância.

Todos leram os pequenos textos de aquecimento. E após uma breve troca de ideias, rapidamente passaram para a próxima tarefa.

- Vou ler-vos sete expressões. Com elas terão que criar um novo texto em dez minutos.

Expressões a utilizar :

- Meias de vidro
- Comprimidos
- Guardas chuvas de chocolate
- Fazer festas no cabelo
- Caixa de cartão
- Tomar Duche
- Comichão no nariz

Ia a passear na rua e vi uma caixa de cartão, no interior: meias de vidro, guardas chuvas de chocolate, uma caixa de comprimidos.
Repentinamente senti comichão no nariz e tive que o coçar, desculpem é um tique nervoso quando não sei o que pensar.
Olhei à minha volta e peguei na caixa, transportando-a debaixo do braço dirigi-me para casa. Cheguei, vi-me ao espelho e fiz uma festa no meu cabelo, ou melhor na do meu reflexo. Não lhe consegui tocar, senti o frio do vidro e comecei a chorar. Lágrimas escorriam, o meu lábio tremia ligeiramente, sentia frio e calor, parecia que estava a delirar. Resolvi um duche tomar, afinal raio de moço já és grande e crescido demais para chorar.

Durante a leitura dos textos, chegou o elemento atrasado, mas o ritmo de leitura manteve-se vivo. Algumas frases despertaram-lhe a atenção e o debate de ideias prosseguiu.

- Passem estas folhas entre vós, se fazem favor. Foi deste pequeno conto que tirei as sete expressões com que criaram o vosso texto. Alguém quer ler?

As pessoas crescidas

“As pessoas crescidas fui-as conhecendo de baixo para cima à medida que a minha idade ia subindo em centímetros, marcados na parede pelo lápis da mãe. Primeiro eram apenas sapatos, por vezes descobertos sob a cama, enormes, sem pé dentro, e logo calçados por mim para caminhar pela casa, erguendo as pernas como um escafandrista, num estrondo imenso de solas. Depois tomei conhecimento dos joelhos cobertos de fazenda ou de meias de vidro, formando ao redor da mesa debaixo da qual eu gatinhava uma paliçada que me impedia de fugir. A seguir vieram as barrigas de onde a voz, a tosse e autoridade saíam apesar do esforço inútil de suspensórios e de cintos.
Ao chegar à altura da toalha aprendi a distinguir os adultos uns dos outros pelos remédios entre o guardanapo e o copo: as gotas da avó, os xaropes do avô, as várias cores dos comprimidos das tias, as caixinhas de prata das pastilhas dos primos, o vaporizador da asma do padrinho que ele recebia abrindo as mandíbulas numa ansiedade de cherne. Compreendi por essa época que tinha o riso desmontável: tiravam as piadas da boca e lavavam-nas, a seguir ao almoço, com uma escovinha especial. Aconteceu-me encontrá-las sob a forma de gargantilhas de dentes num estojo de gengivas cor-de-rosa escondidas por trás do despertador nas manhãs de domingo, a torçarem dos rostos quem se elas envelheciam mil anos de rugas murchas como flores de herbário devorando os lábios com as suas pregas concêntricas.
Já capaz pelo meu tamanho de lhes olhar para a cara, o que mais me surpreendia neles era a sua estranha indiferença perante as duas únicas coisas verdadeiramente importantes do mundo: os bichos-da-seda e os guarda-chuvas de chocolate. Também não gostavam de coleccionar gafanhotos, de mastigar estearina nem de dar tesouradas no cabelo, mas em contrapartida possuíam a mania incompreensível dos banhos e das pastas dentríficas e quando se referiam diante de mim a uma parente loira, muito simpática, muito pintada, muito bem cheirosa e mais bonita que eles todos, desatavam a falar em francês olhando-me de banda com desconfiança e apreensão.
Nunca percebi quando se deixa de ser pequeno para se passar a ser crescido. Provavelmente quando a parente loira passa a ser referida, em português, como a desavergonhada da Luísa. Provavelmente quando substituímos os guarda-chuvas de chocolate por bifes tártaros. Provavelmente quando começamos a gostar de tomar duche. Provavelmente quando cessamos de ter medo do escuro. Provavelmente quando nos tornamos tristes.Mas não tenho a certeza: não sei se sou crescido.
Claro que acabei o liceu, andei na faculdade, tratam-me por senhor doutor e há séculos que ninguém se lembra de me mandar lavar os dentes. Devo ter crescido, julgo eu, porque a parente loira deixou de me sentar ao colo e de me fazer festas no cabelo provocando em mim uma comichão no nariz que me tornava lânguido e que aprendi mais tarde ser o equivalente do que chamam prazer. O prazer deles, claro, muito menor que o de mastigar estearina ou aplicar tesouradas à franja. Ou rasgar papel pela linha linha picotada. Ou mostrar o sapo à cozinheira e vê-la tombar de costas, de olhos revirados, derrubando as latas que anunciam Feijão, Grão e Arroz e que na realidade contêm massa, açúcar e café.
Devo ter crescido. Se calhar cresci. Mas o que de facto me apetece é convidar a parente loira para jantar comigo no Gambrinus. Peço ao criado que nos traga duas doses de guarda-chuvas de chocolate e enquanto chupamos a bengalinha de plástico mostro-lhe a minha colecção de gafanhotos numa caixa de cartão. Posso estar enganado mas pela maneira como me fazia festas no cabelo, com olhos tão jovens como os meus, quase aposto que ela há-de gostar.

António Lobo Antunes in Livro de Crónicas

A leitura foi expressiva, muito por influência da voz que lia. E após a leitura falou-se sobre o tema do texto, a maneira como fora construído e as recordações que lhe estavam subjacentes.

- Bem, antes de seguirmos para intervalo. Dividam uma folha ao meio e façam duas colunas onde escrevam as palavras Telemóvel e Coração e por baixo de cada uma delas, cinco palavras que vos remetam para elas.

Telemóvel: Teclas-Som-Objecto de Controlo-Visor-Mensagens
Coração: Emoção-Sangue-Bombear-Vida-Partido

- Já está? Óptimo, construam três frases que contenham uma palavra de cada coluna. E dessas, escolham duas para ler em voz alta para a turma.

Ao som do sangue a brotar, começou a chorar.

A vida controlada por um objecto? É um bocado ridículo por vezes, não?

Mensagens foram trocadas. O Coração bombeava sangue, cada vez que via o visor a piscar.

Depois de todos lerem as frases, tiveram uns momentos de intervalo. Nesse intervalo alguém deu a ideia do grupo criar um blogue. Ouviram-se as opiniões de cada um e ficou decidido que era uma ideia viável e como tal seguiria para a frente. No pouco tempo restante, alguns foram beber um chá outros simplesmente fumar. Quando voltaram todos aos seus lugares, foi dada nova “ordem”.

- Para variar, dez minutos e o texto deve acabar na forma: “Isto é porque nem toda a gente tem coração mas toda a gente telemóvel” e conter as duas frases que leram em voz alta.

No início da relação gostava dela. Sentir o seu cheiro e odor, tocar no cabelo, olhar para as palmas das mãos. Mensagens eram trocadas, o coração bombeava sangue mais rápido sempre que via o visor piscar, mas quando não era ela sentia-se mingar.
O tempo passou, o vermelho mudou para rosa que evoluiu para cinza. O contacto foi perdendo intensidade, até ao dia em que foi traído. O coração parou, ponderou que cor usar e escolheu o negro para encarnar. Saiu de casa desvairado, quis com a vida acabar.
Correu para um parque isolado e desolado. Ao chegar, tirou do bolso uma pistola e deu um tiro no peito. Ao som do sangue a brotar, começou a chorar.
Toda a história para dizer, nem toda a gente tem coração mas toda a gente tem telemóvel, para aos adultos brincar e o amor enterrar.

Muitas palavras ganharam corpo e forma ao serem proferidas. O som percorria as paredes da sala e ressoava nos ouvidos. Até surgir o último desafio, “jogar” o cadavre exquis (cadáver delicado), que consiste em criar uma frase colectiva, sendo que o jogador desconhece o que o vizinho escreveu anteriormente. Na aula fizeram-se quatro perguntas e consequentes respostas, porém estas eram respondidas em papeis trocados, aleatoriamente. Fica um breve exemplo:

- Se eu fosse magro?
Era livre. Sem amarras e raízes.

- Porque é que a escrita criativa é terapêutica?
Porque uso sapatos 42.

-Como é viver e morrer em Las Vegas?
Demasiado embaraçoso.

- Qual é a solução para o problema da estupidificação geral?
Mandá-las para o espaço.


Soaram gargalhadas ao ouvirem-se certas perguntas e respostas. A boa disposição reinava e a percepção que a aula chegara ao fim surgiu quando se proferiram as frases habituais. Porém houve uma pequena mudança, nesta última aula cada um teve o direito de tirar um post-it da parede e ficar com ele, porém a frase de balanço, devia inspirar-se nesse mesmo post-it.

· Hoje das 19.30-22...

Quis brincar ao vento e que o grupo continuasse a enfeitar-se de festa

Frase do post-it:

“- Qual é a solução para o problema da estupidificação geral?
Mandá-las para o espaço.”

1 comentário:

MaB disse...

ahahahah
É mesmo!!!:)