quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Neve em Bagdad

Saiu do avião, e aspirou a brisa quente que corria sobre as terras de Zaratrustra. Era Inverno. Para ele como se estivesse no pico do Verão, naqueles dias em que temos de ir ao fundo de nós para vencer a inércia, que nos petrifica a existência.
Hordas de taxistas rodearam-no, queriam à força levá-lo para o centro de Bagdad. A muito custo conseguiu furar entre a multidão, chegou junto do amigo, que o esperava de braços abertos e sorriso nos lábios. Antes de pronunciarem uma palavra, abraçaram-se efusivamente, dando palmadas vigorosas nas costas, como se cada pancada provasse ao outro que estavam realmente juntos.
Dirigiram-se ao carro em passo rápido e elástico. Acomodaram a pouca bagagem do recém-chegado e partiram para os arredores. Após as primeiras palavras banais semi balbuciadas, começaram a falar de um modo um pouco agressivo. Parecia que a paisagem que os rodeava, transferia para o carro toda a sua energia. E aquelas manifestações iniciais, não passavam de uma mera máscara, que podia funcionar noutros locais do planeta, mas não aqui. Não em Bagdad!
- Então, o que te traz cá?
- Inscrevi-me numa ONG, tenciono ajudar na reconstrução do Iraque.
- És louco. O tempo vai-se encarregar de acabar com o teu idealismo.
- És sempre o mesmo pessimista, qualquer que seja o projecto em que te envolves. Afinal porque é que vieste?
- Muito simples. Para garantir que o meu governo ganha o suficiente com esta guerra, para contrabalançar a péssima imagem que deixamos na ONU e todo o dinheiro empenhado no esforço militar. Como sabes, as nossas reservas petrolíferas estão a acabar e para além disso, há que expandir o nosso poder.
Enquanto o amigo proferia este discurso elaborado e repetido, aquele pedaço de terra dramática e torturada, desfilava como pano de fundo. As pessoas, mães, pais, filhos que sofriam como ninguém o peso do conflito, provocaram-lhe inicialmente comoção e depois uma raiva crescente, que não parava de aumentar, a cada quilometro percorrido, a cada face, a cada olhar.
- Mercenário! Não passas de um reles funcionário de governo, que só vê cifrões à frente. Que desilusão, conheço-te há muitos anos, mas nunca esperei isto de ti.
- É assim o mundo capitalista em que vivemos. Ou fazes parte da máquina, ou és triturado por ela.
- Então prefiro ser triturado por ela! Deixa-me aqui!
- Não sejas idiota. Estás num cenário de guerra, caso tenhas resolvido ficar na ignorância nos últimos anos.
- Não me interessa. Como te disse, antes ser torturado ou assassinado, do que pactuar contigo. Tens as mãos sujas de sangue, deste conflito hediondo.
- Muito bem, como queiras. Não digas que não foste avisado. Ainda vais engolir as palavras que proferiste.
O carro parou no meio de um bairro, parcialmente destruído. Tirou a pouca bagagem que tinha e bateu com a porta estrondosamente. Viu o “amigo” gesticular freneticamente e a partir prego–a–fundo, deixando atrás de si uma nuvem de fumo.
- Foda-se, tanta estupidez concentrada numa pessoa, incrível. E eu que o conheci, numa altura que ambos defendíamos os mesmos ideais. Que lavagem cerebral lhe fizeram.
Começou a percorrer o bairro melancolicamente, reparando em pouco ou nada. Olhares interrogativos, indiferentes, curiosos, cheios de ódio, desfilavam na cara daquele povo. Até que um primeiro iraquiano o abordou. Estancou abstracto, e nas poucas palavras que consegui pronunciar, disse que estava perdido, que não tinha muito dinheiro, mas que o daria se alguém o ajudasse. Passados uns momentos, apareceu um segundo iraquiano que passava de mota.
- Não tenho nada contra ti. O teu povo, acabou por salvar-me a mim e aos meus irmãos da opressão. Mas aconselho-te a saíres deste bairro comigo, estás num bairro de maioria sunita e como deves saber, não és muito popular.
- Estou nas tuas mãos, leva-me para onde achares que é mais seguro.
- Aqui não existem locais seguros, mas vou levar-te para minha casa.
- Obrigado, não sei como agradecer.
Os seus olhos começarem a brilhar e quando deu por si, parecia uma criança pequena a chorar. Todas as emoções das últimas horas abateram-se sobre ele e a fuga foi o choro. Subiu para a mota e arrancaram. Andaram cerca de 40 minutos (para ele poucos segundos) e quando desapearam, viu que estava numa zona residencial, menos destruída. Com um pouco de imaginação, via flores e jardins, mas ao menos via pessoas na rua e crianças a correr.
- Aqui estás mais seguro, esta é a outra margem do Rio Tigre. Mais pacífica, sem tantos atentados e banhos de sangue, onde as pessoas, apesar de todas as privações, tentam viver a sua vida o mais dignamente possível.
- Antes de vir, informei-me sobre a situação actual mas não me guiei pelos noticiários, porque esses, obviamente, só falam dos atentados, número de mortos, desmembrados, etc...
- Os noticiários iraquianos são iguais. Só mortes e mais mortes, acho que existem alturas em que não me sinto humano. Se não fossem os meus filhos, acho que não passava de um robot.
Os miúdos corriam na rua alegremente atrás de uma bola de trapos, a mulher notava-se que estava grávida, esperava-os na ombreira da porta. Inesperadamente, pelo menos para ele, não começou a gritar com o marido, antes calmamente apontou, como se pretendesse saber quem era, e o que estava ali a fazer. Descalçaram-se e entraram na habitação, uma humilde casa de rés-do-chão com duas divisões. Uma era um misto, sala-cozinha; a outra, um quarto para o casal e para os dois filhos, separado ao meio por uma cortina.
Sentaram-se no chão, numas almofadas, de pernas cruzadas e serviram-lhe um chá. De olhos fechados, sentiu o odor que se depreendia da superfície, saboreando aquela frescura da menta. Quando voltou a abri-los, os filhos do casal estavam especados a olhar para ele, com aquela curiosidade infantil, e o sorriso cândido.
- O que te trouxe a Bagdad, e porque motivo estavas naquele bairro?
Contou-lhe toda a história, que o levara desde o seu país até ao momento em que fora encontrado no bairro. Quando acabou a descrição, ficou calado a meditar sobre as suas opções para o futuro. Sentiu que não podia ficar naquela casa indefinidamente, apesar da boa recepção, sabia que estava a ser um peso excessivo. Por isso, decidiu na próxima manhã dirigir-se à ONG e falar com os responsáveis para saber qual o papel a desempenhar no futuro.
- Agradeço tudo o que fizeste por mim. Toma este dinheiro, não é muito mas é tudo o que tenho de momento. Apenas te peço que amanhã me digas como chegar à ONG.
- Para nós é muito dinheiro, não posso aceitar. Alá diz-nos que devemos ser caridosos, para os mais fracos e desprotegidos. Naquele momento eras o mais fraco, não fiz mais que a minha obrigação.
- Aceita, por favor. Pela tua mulher, pelo teu filho que vai nascer, se não o fizeres por ti, fá-lo por eles.
- Se pões assim a situação, aceito. Mas imponho a condição de amanhã levar-te.
Sentou-se no limiar da entrada e acendeu um cigarro, oferecendo outro ao seu salvador, o sol descia sobre a linha do horizonte, espalhando tons rosa-alaranjados. A temperatura continuava elevada e bandos de pássaro esvoaçavam no céu.
- Anda, vamos jantar. Amanhã é um novo dia.
O jantar trouxe-lhe sabores exóticos, apesar de não haver muita variedade, a comida estava cheia de sensações. Comeu com imenso prazer, e sentiu que o cenário apesar de negro, não era tão escuro como o Ocidente o pintava.
No dia seguinte, ainda o sol não tinha nascido, já estavam a caminho. Ruas quase desertas patrulhadas por blindados dos EUA que, apesar de todas as normas de segurança, não os chegaram a interpelar. Chegaram ao edifício da ONG, e aí sim, a 100 metros de distância já havia uma zona delimitada de segurança, cheia de arame farpado e soldados a bloquear a entrada. Apearam-se da mota conforme lhes mandaram, entregaram o passaporte e o documento que comprovava que realmente ele era um membro da organização. O iraquiano não pôde entrar, e no meio de tanto preconceito, deram um abraço sentido, um abraço de verdadeiros amigos, irmãos de coração.
Entrou e ficou à espera de ser atendido por algum superior. Como chegara a horas impróprias, teve que esperar num corredor, onde acabou por adormecer. Já passava das 8 horas quando alguém lhe deu um toque no ombro, e disse que podia entrar para o gabinete. Acordou estremunhado e lá se arrastou, pronto a ouvir e a obedecer às ordens que recebesse.
- Bom dia, sente-se. Antes de mais quer um café? Água? Chá? Saiba que é um prazer recebê-lo na nossa organização. Um activista como você, já com créditos firmados, confesso que fiquei um pouco surpreendido quando falou comigo a voluntariar-se.
- Não vejo porque motivo tanta surpresa, sou um homem de causas. Acredito que certas acções podem mudar o mundo em que vivemos. E quantas mais pessoas puxarem no mesmo sentido, melhor. Confesso que estava um pouco cansado de ser activista no meu país, sentia-me longe da frente, longe dos problemas, enfim, um inútil.
- Não diga isso! Você é de longe dos activistas mais valiosos que existem espalhados pelo planeta. A comunicação social adora-o, as pessoas, as massas ouvem-no com deleite. Digamos que tem uma aura de credibilidade e carisma inigualáveis.
- Seja. Agradeço os elogios, mas gostava de saber em que posso ser útil. Sinto-me motivadíssimo para entrar no terreno, dar o melhor de mim para tentar melhorar a vida das pessoas deste país.
- Bem, muito sinceramente, apesar de chegar hoje ao Iraque, gostava de fazer de si o meu braço direito. Ficaria responsável pela zona Bassorá, que é uma zona extremamente complexa, mas acredito que com as suas qualidades é a melhor pessoa para o posto.
- Muito bem. Quando devo partir?
- Se não se opusesse, gostaria que viajasse hoje mesmo. Ainda é um desconhecido, isso é uma vantagem. Vamos aproveitar, assim pode viajar incógnito como qualquer pessoa comum. Vai partir às 2 da manhã da estação de autocarros e faz a viagem durante a noite, que lhe parece?
- Perfeito. Isso quer dizer que tenho o resto do dia livre, não?
- Sim, mas por razões de segurança não quero que saia do edifício. Quanto menos pessoas o virem, melhor. Aproveite para descansar, começar a ler os dossiers...
O dia passou sem grandes novidades, foi-se arrastando. Sentia adrenalina pura por estar prestes a realizar a maior obra da sua vida, só esperava pelo momento de chegar a Bassorá. Por volta da meia noite, foi escoltado até à estação dos autocarros, aí 100 metros antes, abandonou a formatura, tentando denunciar-se o menos possível. Comprou o bilhete e aguardou a hora de embarcar.
O autocarro acabou por atrasar-se, nessa altura fazia frio, muito frio em Bagdad, parecia que alguém tinha mudado a latitude da cidade. Finalmente, o autocarro chegou e as pessoas começaram a entrar e acomodar-se nos assentos. Quando finalmente ia pôr o pé no degrau, o motorista sem aviso prévio fez-se explodir. Chamas deflagraram em todas as direcções, o autocarro foi completamente reduzido a sucata. Um fumo espesso negro subia, ao mesmo tempo que flocos de neve começaram a cair pelo céu de Bagdad.

1 comentário:

Anónimo disse...

Título brutal... Texto fenomenal... A ficção que tu desenvolveste enquadra-se perfeitamente à realidade. keep goin