segunda-feira, 24 de novembro de 2008

No Mundo da Escrita Criativa, III





Entrou na sala, às caras conhecidas juntava-se uma nova. Alguém viera fazer um artigo sobre as aulas de escrita criativa e nada melhor que experimentar, para depois poder escrever. Os nomes já estavam memorizados, apesar de por vezes um nome se perder no meio do rebuliço geral.
A professora falou da plasticina e o objectivo seria moldar o que quiséssemos, como nos tempos de infância.
- Ao mesmo tempo, escrevam pensamentos que vos passem pela cabeça, à medida que moldarem.
O toque maleável da plasticina, o cheiro, faziam-no recordar as tardes de menino passadas a descobrir um mundo de cor e tacto. Ao mesmo tempo a mente ocupava-se com questões de Vida e Morte, de acontecimentos que se passavam em todo o planeta.
- Escrevam várias frases ou uma frase que depois se converta num pequeno texto que comece:

Com um pedaço...

de plasticina volto à infância, fabrico sonhos, respiro fundo e vejo.
Sinto algo maleável, dúctil que pode tomar infinitas formas, ter infinitas cores.
A minha bailarina dança ao som do piano que toca melodiosamente e velozmente. Ups! Cansou-se de tanto bailar, ficou deformada, infeliz mas manteve a dignidade à medida que acordes mais melancólicos soaram e o Fernando entrou.

À vez os textos foram lidos e para além da troca de opiniões habituais, foi proposto que se falasse da plasticina e das possibilidades que esta abria. Tanto a nível dos sentidos, como de recordações.
- Trouxe-vos este pequeno texto. Alguém quer ler?

"O Brincador"


Quando for grande, não quero ser médico, engenheiro ou professor. Não quero trabalhar de manhã à noite, seja no que for. Quero brincar de manhã à noite, seja no que for. Quando for grande, quero ser um brincador.
Ficam, portanto, a saber: não vou para a escola aprender a ser um médico, um engenheiro ou um professor. Tenho mais em que pensar e muito mais que fazer.Tenho tanto que brincar, como brinca um brincador, muito mais o que sonhar, como sonha um sonhador, e também que imaginar, como imagina um imaginador...
A mãe diz que não pode ser, que não é profissão de gente crescida. E depois acrescenta, a suspirar: “é assim a vida”. Custa tanto a acreditar. Pessoas que são capazes, que um dia também foram raparigas e rapazes, mas já não podem brincar.
A vida é assim? Não para mim. Quando for grande, quero ser brincador. Brincar e crescer, crescer e brincar, até a morte vir bater à minha porta. Depois também, sardanisca verde que continua a rabiar mesmo depois de morta. Na minha sepultura, vão escrever: “Aqui jaz um brincador. Era um homem simples e dedicado, muito dado, que se levantava cedo todas as manhãs para ir brincar com as palavras”.
(de José Álvaro Magalhães)

A leitura foi bastante expressiva, e surgiu a hipótese de falar da definição de trabalho e brincadeira. A troca de ideias foi intensa, as palavras fluíam animadamente e assim foi introduzido o primeiro texto da aula (o outro fora de aquecimento).

Quando for grande não quero ser

uma árvore. Uma árvore que criou raízes, folhagens verdes e frondosas, um tronco robusto; onde habitassem pássaros e lagartixas; desse sombra aos humanos que viriam descansar no meu regaço e fazer piqueniques.
Até podia viver mais de 150 anos, ser uma árvore centenária. Pronta a ser vista e admirada, mas para quê?
Não quero viver eternamente!
Não quero ser estático como a árvore!
Não quero criar raízes a esta terra!
Mas quero:
Ser as nuvens que passam no céu!
Ser as ondas do mar!
Ser o sol que aquece!
Ser o vento que sopra!

Para não fugir do registo habitual, houve textos fantásticos. E a conversa prosseguiu, desta vez sobre os verdadeiros escritores e de como pode funcionar o processo criativo.
- Diz-se que “todos os escritores devem ter um quarto de Brincadeira”, para poderem criar livremente. Mas a melhor metáfora que ouvi sobre o papel do escritor foi: “ Eu sou como o vendedor de sapatos, continuo a trabalhar até surgir a oportunidade de vender.”

O intervalo apareceu sem aviso, uma vez que o tempo voava tão depressa, que era impossível dar por ele a passar. Alguns aproveitaram para fumar, outros para beber chá e conversar, ou pura e simplesmente estarem silenciosos e ouvir.
Quando a aula recomeçou, percebeu-se que à semelhança do exercício dos postais da primeira aula, iria decorrer um com pedras e que o objectivo final seria a obtenção de palavras que permitissem construir um texto.
As pedras foram circulando uma a uma, de mão em mão dando uma volta completa.

- Uma lista branca no meio da escuridão

- Flores do deserto

- Um pedaço
negro e leve

- Concha laranja e translúcida à luz

- Rectângulo creme e branco salpicado

- Argamassa e um pedaço de mosaico, combinação estrondosa

- Cristais roxos, lembra-me
o coração de Barcelona, metade neste caso

- Negra, oval e picada

- Pedaço laranja, escorregas-me dos dedos

- És mais leve que aparentas e mais áspera também

- Creme e branco: gelado de café e baunilha

- Agora façam como na primeira aula e sublinhem palavras ou frases que vós despertem a atenção. Para além disso escrevam cinco cheiros que tenham presentes e escolham um deles, para o incorporar no texto.

- Café - Canela
- Mar - Bolo de chocolate quente
- Castanhas assadas

- Muito bem, então já sabem dez minutos a contar.

Sentado no meio da escuridão, deu por si a imaginar um coração, bem metade neste caso, a outra ficara em Barcelona.
Enquanto a metade do coração que estava presente batia, segurava um gelado de café e baunilha, a combinação de cheiro e sabor mais estrondosa. Ao mesmo tempo imaginava o deserto e sentia saudades do pó, do calor, dos grãos de areia, da paisagem repetitiva e monótona. Do negro e frio da noite, das estrelas no céu, a leveza do riso. Das pedras roxas, cremes, pretas e laranjas, translúcidas ou opacas. Da paz, da serenidade e do silêncio... e deu por si a acordar agarrado ao coração partido em dois.

O dom da voz nesta altura era fundamental, tanto para se ler o texto, como para poder comentar os dos outros elementos do grupo.

- Bem lembram-se da brainstorming de substantivos? Vamos fazer uma de verbos, de preferência digam verbos que não comecem por de.


- lutar - amar - jogar - sonhar
- respirar - brincar - asneirar - furar
- trabalhar - comer - proibir - fazer
- assoar - fumar - espirrar - cobrir
- morrer - sorver - acalmar - correr
- matar - descobrir - fugir - fornicar
- ler - sair - saber - suicidar


- Dessa lista, escolham oito deles e transformem-nos em verbos inexistentes:

- desrespirar - desproibir
- desbrincar - desfumar
- destrabalhar - desasneirar
- desfornicar - deslutar

- Optem por cinco para criar frases com o verbo conjugado, e leiam três delas para a restante turma:

- Quero que desrespires, pode ser que te ajude

- Desmatei-me a destrabalhar

- Pará de desbrincares, desse modo serás feliz

-
Desproibo-te de brincar com o perigo

- Desfumei este belo cigarro enquanto via o fumo ser soprado

Frases hilariantes foram ouvidas, gargalhadas sonoras demonstravam a boa disposição reinante e a percepção que a aula chegara ao fim foi dada pelas frases habituais.


·
Hoje das 19.30-22...

Destrabalhei alegremente e brinquei animadamente.


Frase do post-it:

“Sentado no meio da escuridão, deu por si a imaginar um coração, bem metade neste caso, a outra ficara em Barcelona.”

1 comentário:

MaB disse...

Como eu te compreendo. Há muitos sítios que merecem metade do nosso coração, e outros tantos onde ela teima em ficar!

beijinhos grandes***está óptimo, tal como me habituaste:)