terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Surrealismos


Imagem em : bp0.blogger.com/.../s400/AMBULANCIAS3.jpg

- Estou com dores no peito! Aiiiiiii, que dor tão aguda! Não consigo respirar! Por favor liga para o número de emergência, rápido!
- O quê? Que dizes? Só podes estar a brincar, mas não tem piada!
- És mesmo estúpida! Qual brincar?! Liga imediatamente acho que estou a ter um ataque cardíaco.
A mulher entrou em pânico e em plena histeria ligou. A chamada foi super-stressante, mas a custo lá conseguiu dar a morada e descrever os sintomas dos quais o marido padecia.
Menos de cinco minutos volvidos e entravam-lhes pela casa uma equipa de emergência médica, com uma maca e uma mala com os primeiros suportes de vida. Estabilizaram-no, meteram-no na maca e seguiram para a ambulância. Lá dentro o condutor tentava a todo o custo, contactar com um dos vinte sete hospitais centrais da cidade. Como o mais próximo do local onde se encontravam não dava uma resposta positiva, começaram a dirigir-se para o seguinte. Quando lá chegaram, não os deixaram tirar o paciente da ambulância dizendo-lhes que não tinham espaço disponível para o receber.
Foram seguindo a viagem pelo purgatório de Paris, que aos poucos foi-se revelando uma viagem pelo inferno. A cada paragem desesperada a mesma resposta lacónica.
- Sentimos muito, não temos espaço.
E a qualquer tentativa, de argumentação.
- Mas este é o décimo hospital que vimos!
- Sinto muito, regras são regras! Não se preocupe, há-de encontrar algum que o receba.
Aos poucos a situação clínica, foi-se instabilizando. A ambulância apenas tinha suporte de vida para algumas horas, não estava preparada para uma situação daquelas. Os paramédicos desesperavam, tentavam a todo o custo fazer o melhor que conseguiam na difícil situação em que se encontravam. O condutor já tinha dificuldade em conduzir, tal já era o stress que estava a acumular. Passadas três horas já só conseguia articular.
- Merda! Merda! Merda! Ele vai morrer aqui! Tão-se todos a cagar para nós!
Qual profeta, o paciente acabou por sucumbir passadas seis horas dentro do único local que o recebeu e lhe deu esperança de poder voltar à vida.

Texto baseado na notícia:

“ Paris, 30 Dez (Lusa) – Um homem de 57 anos, que sofreu um ataque cardíaco nos arredores de Paris, sábado, morreu depois de ter esperado seis horas por falta de espaço num serviço de reanimação, em plena polémica sobre a falta de meios nos hospitais franceses. (Jornal 2- RTP)”

O Menino de Gaza


Imagem em: www.rtp.pt/.../images/articles/379700/gazahp.jpg

Acordou estremunhado, com a mãe a chama-lo para o pequeno-almoço. Ainda nem o sol tinha nascido e este menino já se lavava e vestia para ir para a escola. Dias de Gaza não se compadecem com quem lá vive, duros e áridos como a paisagem, afiados como o aço das bombas, rockets, balas que são projectadas.
- Arafat já rezaste? Só podes começar a comer depois de rezar.
- Ó mãe, mas não é justo! O papá já está a comer e as manas também.
- Isso foi porque já rezaram...vá não faças birra e reza!
Arafat contrariado levantou-se, virou-se para Meca e começou as suas orações. Este era o filho mais novo do casal e o nome tinha-lhe sido dado em homenagem ao carismático líder Palestiniano.
- Já posso começar a comer agora!?
- Não sejas impertinente, sabes bem que podes.
Após o pequeno-almoço, recebeu um saco com o almoço, pegou na mala, despediu-se da família e dirigiu-se para casa do seu amigo Said (com que seguiria para a escola). O sol começava a nascer e o dia ia ganhando tons mais suaves quando deixaram a casa de Said, a discutir quem era o melhor jogador de futebol do mundo.
O bairro deles foi ficando para trás e aos poucos aproximavam-se de zonas mais destruídas. Buracos de balas e morteiros eram vísiveis em vários edifícios, carros carbonizados, ruas cheias de entulho e arame farpado, eram as marcas de uma zona massacrada por um conflito de seis décadas. Quando passaram o primeiro posto de controlo montado pelos soldados israelitas (uma vez que a escola estava situada no lado judaico da faixa de Gaza), discutiam de maneira tão acalorada qual o melhor Messi ou Ronaldo, que até os soldados se riram.
As horas do dia foram sendo desfiadas lentamente. De manhã aulas sem interrupções, apenas uma paragem já próxima do meio-dia para rezar e almoçar. A tarde essa, iniciou-se com a leitura do Corão, prosseguiu com escrita, paragem para rezar e acabou com o tradicional jogo de futebol com bola de trapos. No caminho de regresso já não havia discussão acesa, estavam ambos exaustos e só pensavam em chegar a casa e descansar. Antes do jantar ainda houve mais duas orações, trabalhos de casa e finalmente um pouco de tempo para brincar.
A família estava finalmente reunida à mesa, a comer animadamente quando se ouviu um primeiro estrondo. Um barulho ensurdecedor atingiu-os como uma onda de choque violenta, pela janela viram uma luz avermelhada e chamas a deflagrarem pelo céu da noite, que agora era menos escura.
O pai gritou de modo a fazer-se ouvir:
- Todos para o vão interior do quarto! Afastem-se das janelas e mantenham-se unidos!
A família correu para o local e os seus corpos que tremiam juntaram-se, de modo a protegerem-se uns aos outros. Porém de nada lhes serviu, passados poucos minutos o prédio foi bombardeado, incendiou-se e começou a desmoronar-se. Felizmente para eles passaram a ponte para o outro lado, quando um primeiro fragmento de calor e luz os atingiu e o pai ainda conseguiu articular.
- Foi uma estrela cadente meninos, Alá ofereceu-nos o ouro do céu...



Texto baseado na notícia:
“A aviação israelita voltou hoje a bombardear vários sectores do enclave palestiniano da Faixa de Gaza, no segundo dia de uma ofensiva que já provocou 280 mortos e 620 feridos.” (site da RTP)

O minuto com 61 segundos



Imagem em: www.wallpaperbase.com


O space shuttle dirigia-se para a Terra a toda a velocidade, os escudos térmicos estavam accionados e começava a ver-se a incandescência das ligas metálicas devido ao atrito. Os astronautas estavam ansiosos pelo regresso, afinal a missão já contava com seis meses e a vida no espaço apesar de toda a beleza, desgastava pela monotonia.
Pelos elaborados cálculos matemáticos estaria para breve a entrada na órbita terrestre, subitamente os computadores recalcularam a trajectória e deram o sinal de alerta. Alarmes soaram tanto a bordo, como na agência espacial internacional e gerou-se o pandemónio, cientistas começaram a deitar as mãos à cabeça, mas a frieza das máquinas não deixava dúvidas. Aqueles astronautas jamais voltariam a pisar o planeta Terra, um ligeiro desvio no ângulo de entrada na atmosfera fez com que a fricção fosse excessiva, como consequência os materiais não suportaram a temperatura e deu-se a desintegração completa.
Nos dias seguintes à tragédia, houve uma tremenda atenção por parte dos media e explicações sucederam-se. Falha dos escudos térmicos avançavam uns, erros nos cálculos referiam outros, havia ainda quem divulgasse que os materiais eram de qualidade mais fraca para diminuir os custos, porém o tempo foi passando e o relatório oficial não era divulgado. Lentamente os media foram perdendo o interesse e com eles, a opinião pública em geral. Enquanto isso o relatório foi elaborado e arquivado (chegaram-se a conclusões, mas estas nunca foram divulgadas devido ao embaraço que iriam causar).
A Terra continuava a mover-se como sempre, desde os seus primórdios. Mas com toda a tecnologia ao dispor do ser humano o tempo atómico passou a ser o método mais estável e exacto de medição. Na comunidade científica o método tradicional, o da rotação do eixo da Terra era obsoleto, sendo apenas referido pelas massas, como senso comum. Desse modo esse método mais antigo e também mais instável, necessitava ser acertado, afinal em 700 anos podia-se atingir a diferença de uma hora.
Nesse ano o último minuto teve 61 segundos e para quem pensa que um segundo não é relevante, atente. Num segundo: pode-se dizer o que nunca se disse a vida inteira (amo-te, odeio-te, beija-me, dispara...), bater um recorde, ganhar ou perder uma corrida, uma prova ou até a vida... e falhar a órbita da Terra.

Texto Baseado na notícia:

“No último dia do ano, o último minuto terá 61 segundos, para compensar a rotação do eixo da terra que abrandou ligeiramente. Cientistas decidiram acrescentar ao tempo atómico um segundo para “acertar” o tempo da terra." (Telejornal -RTP1)

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

A Toupeira e o Rato Voador


Sentado num auditório cheio, sentiu-se sozinho. O orador fazia uma lavagem cerebral sobre uma das empresas que patrocinara o evento. O poder dos patrocinadores sempre o impressionou. Fornecem o dinheiro e ficam com o poder de se envolver no evento, tornando-o aborrecido, enfadonho, vazio. Nesta altura perguntou-se o que fazia ali. A mente assemelhava-se a uma película de cinema, passando imagens velozmente. Pensava no tempo perdido inutilmente, na “obrigação” de estar preso e voou na história.

A Toupeira e o Rato Voador

Na terra verde azeitona da Calipómia existiam duas criaturas. Uma toupeira que vivia no interior da terra, sempre a escavar, a usar outros sentidos para além da visão, no meio da humidade, dos vermes, da escuridão. Por ironia não havia animal mais limpo, o pelo e as suas garras estavam sempre brilhantes, apesar de toda a imundice em que habitava. E o rato voador, este tinha toda a liberdade do espaço, o céu era o limite. Voava e vagabundeava conforme lhe apetecia, mas não tinha amigos, o pelo apesar de limpo tinha sempre um cheiro desagradável, afastando outros seres.
Uma noite a toupeira veio à superfície, gostava de sentir a brisa, o vento nas faces, sonhar com a luz que não podia suportar e principalmente com a possibilidade de voar. Mesmo a sonhar o focinho, perscrutava a escuridão à procura de qualquer indício de predadores ou outros seres. Gostava de saber todas as novidades que aconteciam fora do seu habitat e por isso sempre que podia entabulava conversa. Repentinamente o seu olfacto apurado, detectou um cheiro bastante desagradável, mas como a curiosidade era superior ao desconforto, deixou-se ficar alerta.
Passados poucos segundos, vindo do céu o rato voador pousava as suas patas no solo. Estava com um ar desolado e alienado, lentamente dirigiu-se para um tronco. Sentou-se e começou a chorar, com a voz embargada pelas lágrimas.
- De que me serve voar, conhecer todo o mundo, saber todas as novidades se não tenho amigos? Poder sentar-me e conversar, desabafar, partilhar as minhas histórias e ouvir as de outrem. Haverá algo mais gratificante?
A toupeira ouviu o apelo de solidão e apesar de renitente inicialmente, aproximou-se tocando-lhe. Este lentamente parou de chorar, limpou as lágrimas e levantou a cabeça, à sua frente estava a toupeira de olhos semi-cerrados, a olhar. Ficou confuso, nunca nenhum ser se aproximara tanto de si. Vencendo a surpresa inicial, articulou finalmente.
- Que fazes aqui? Como consegues estar tão próxima, apesar do meu odor pestilento?
- Porque sou curiosa por natureza. Gosto de falar com outros seres, saber novidades do mundo e nunca vi nada que se assemelhasse, um rato voador.
- Pensas então que sou um bicho raro, que deve ser admirado?
- Antes de admirado, respeitado. Não te conheço, não te posso admirar apenas por voares. Ainda para mais se foi um dom com o qual nasceste?
- Sim foi…és ponderada, racionalista e bastante serena.
- E sonhadora, optimista e curiosa…
O rato durante uns momentos calou-se e fixou o olhar no vazio, como se mergulhasse em profunda introspecção. De repente voltou a si.
- Toupeira, vives nas profundezas e és um ser feliz. Eu por meu lado vivo com toda a liberdade e sou uma imagem tua mas assimétrica. Ensina-me a ser como és!
- Ensinar-te a ser feliz? Isso não existe, nem é possível de ensinar. O que posso fazer é passar algum tempo contigo e ensinar-te a ver a felicidade em pequenos momentos, em pequenas coisas, coisas simples e diárias. Depois de observares, trilharás o teu caminho.
Iniciou-se uma nova fase na vida de ambos, mas principalmente do rato voador. A pouco e pouco foi descobrindo os pequenos prazeres. A aurora, as gotas de orvalho nas folhas, os reflexos nos charcos, o vento a murmurar entre árvores, os anéis dos cogumelos, o pôr-do-sol e nascer da lua, o silêncio quebrado pelo riso, pequenas conversas. Tinha pela primeira vez um amigo, ou melhor amiga, neste caso. Finalmente podia relatar a alguém todas as suas experiências, demonstrar a sua inteligência e aprender a ser paciente e mais atento. A toupeira, ouvia histórias de países e reinos distantes, fechava os olhos e com as descrições divagava com a mente. A relação dava pequenos passos, tornava-se forte como uma parede de titânio resplandecente em tons de prata. Certo dia, a meio de uma conversa.
- Toupeira, eu sei o quanto sonhas com voar. Queres voar comigo, para saberes qual a sensação?
A toupeira inicialmente ficou sem reacção. Não acreditava no que ouvia. Voar? Seria verdade? A mente carburava a todo o vapor, debitava pensamentos soltos. Sim, não, concretização de um sonho, medo de sentir a “luz” e não se voltar a adaptar à escuridão, amizade, dúvida…
Vendo que estava confusa, o rato prosseguiu.
- E para te sentires mais à vontade que tal uma permuta? Passas um dia comigo a voar, desculpa, noite no teu caso. E eu vou contigo para debaixo de terra, para as profundezas.
As dúvidas finalmente dissiparam-se, qual nevoeiro que é rasgado pela luz.
- Amadureceste, estás pronto para ser feliz, ou melhor para teres momentos de felicidade na tua vida. Aceito, afinal nada melhor que experimentar-mos o meio em que vivemos para sentir se ele nos molda, ou se molda conforme a nossa vontade.
Nesse dia a toupeira levou o rato para as profundezas, para a escuridão, para as trevas. Mostrou-lhe que mesmo num meio imundo existe beleza. A perfeição das galerias escavadas por ela e pelas suas irmãs, os formigueiros que trabalhavam com a precisão de um mecanismo de corda, os charcos e as grutas onde habitavam estranhos seres, que nunca viram a luz. Raízes e plantas de odores delicados e sabores adocicados. As horas passaram e o dia foi dando lugar à noite, rato e toupeira voltaram para superfície, onde encontraram uma noite de verão auspiciosa. Sentiram a aragem suave que corria e deixaram a terra, voaram juntos durante horas, qual estrelas cadentes. Do céu a toupeira via como o mundo se tornara amplo, livre sem peso; voaram ao lado de bandos de pássaros, furaram nuvens, sentiram os aromas e os sons da noite, percorreram distâncias.
Até que do nada ouvi-se PUM! PUM! Um tiro perfurou o rato voador e a toupeira simultaneamente e começaram a cair em queda livre. Felizmente no meio da dor e do pânico, conseguiram aterrar violentamente no meio da erva. Percorreram metros aos trambolhões, até se imobilizarem finalmente, no chão jaziam toupeira e rato voador. Momentos passaram a toupeira voltou a si e apesar de trôpega e a sangrar abundantemente arrastou-se até ao rato voador. Quando o viu soltou lágrimas, ele ainda respirava, mas com muita dificuldade.
- Fala comigo! Estou aqui! Hoje fizeste-me ver a luz, já não vou morrer na escuridão!
O rato voador, apesar da voz arfada e pesada, sorriu e respondeu.
- Eu hoje conheci a escuridão que me permitiu finalmente ver, que vivi na luz! Graças a ti vi-a finalmente!

Porque a vida é como é! Segue o seu curso natural, impávida e serena, alheia à vontade de cada ser.


Final Versão alternativa

A noite foi perdendo intensidade, o negro foi-se tornando azul-escuro quase negro, até começar a amanhecer. A toupeira fez sinal para descerem, estava na altura de voltar para a escuridão. Pousaram as patas no chão e olharam-se profundamente.
- Fizeste-me ver a luz! Mesmo que viva na escuridão, vou guarda-la no coração.
- Sempre vivi na luz mas sem ver a escuridão, nunca o soube. Graças a ti vi finalmente a iluminação.

Dedicada a todas as crianças existentes em cada um de nós. Por vezes é bom haver finais felizes.

Porto & Douro Wine Show


Imagem em: http://www.portodourowineshow.com/


Acordou e olhou para o telemóvel. Uma luz piscava e no ecrã: 1 mensagem recebida. Com o braço ainda trôpego pegou-lhe e começou a ler:
-Hello! Tens planos p lgo a tardinha? q tal o Porto & Douro wine show, no convento do Beato?beijo
Porque não? Nunca tinha estado num evento semelhante e provar vinho da zona do Douro era tentador. Como amante de vinho, aceitou o convite com um sorriso nos lábios.
Chegou à baixa, zona de encontro relativamente atrasado. Felizmente a sua companhia tinha estado com amigas e não esperou mais que dez minutos. Deslocaram-se para o carro que estava estacionado perto do teatro Mário Viegas e seguiram para o Convento do Beato. Nenhum dos dois sabia a localização, apenas tinham uma vaga ideia. Então pelo caminho foram perguntado várias vezes, encontrando mesmo uma pessoa que ia para o mesmo sítio, oferecendo-lhe boleia.
Finalmente chegaram e estacionaram onde era possível. Dirigiram-se à entrada, apresentaram o convite e compraram dois copos para a degustação. O espaço apresentou-se-lhes em todo o seu verdadeiro esplendor. Arcadas de mármore colorido delimitavam o espaço, onde decorria a exposição e para além dos muitos expositores de vinho, estavam lá alguns carros de gama alta expostos de modo a associarem a marca ao evento.
Observaram e a organização pareceu-lhes bem conseguida, apesar de muito compacta. Porém a quantidade de expositores era elevada, o que obrigava a uma boa gestão do espaço. Circularam lentamente, parando para provar diferentes vinhos consoante a intuição ou o conhecimento de determinada marca. Havia de tudo, brancos, tintos, reservas, portos, moscatéis, rosés. Sabores frutados, encorpados, leves, abertos, adstringentes, com notas de baunilha, especiarias e madeira (carvalho francês sobretudo), doces, suaves. Diferentes castas, aragonez, bastardo, castelão, touriga franca, touriga nacional, moscatel, arinto, cercial, viosinho. Envelhecidos ou não em madeira durante períodos variáveis. Todas estas múltiplas variantes e muitas mais foram sendo degustadas, ou melhor bebidas.
A dada altura chegou uma das famosas “amigas das amigas” e inicialmente considerou-a pouco simpática, uma vez que nem se apresentou e apenas cumprimentou a amiga. Quase simultaneamente apareceu uma individualidade jornalística desse país, sem qualquer snobismo aparente e diga-se bastante acessível, começou a falar com eles. Bem reformulando, com elas. Uma vez que ele se mantinha um pouco à margem da conversa, observando atentamente a cena que decorria à sua frente, indo buscar amiúde uns copos de vinho.
Basicamente essa consistia, num senhor respeitável a falar com duas jovens aspirantes a jornalistas. Das suas experiências, dos seus filhos, dando conselhos e dar cartões de contacto com número de telefone, e-mail e até MSN. A dada altura da conversa, a tal “amiga da amiga” virou-se para trás sorridente e apresentou-se, revelando uma face mais afável e simpática. Após o término deste momento, duas frases ficaram-lhe a soar nos ouvidos, ambas proferidas por tal ícone:
- Portugal é um país de tribos, eu conheço as tribos mas não faço parte delas; e
- Não nos devemos plastificar.
A degustação continuou como até aí, mas desta vez havia três almas que sorriam, falavam e provavam ou bebiam. Uma novidade foi naturalmente imposta pela nova alma, deslocarem-se à “tenda de fumo” para matarem alguns cigarros. Nessa altura o vinho começava a provocar estragos e a fazer-se sentir. A língua estava mais solta, as cabeças mais leves, existindo uma cumplicidade latente.
A feira estava em fase terminal, mas continuavam a “prova”. Sentia o gosto intoxicado mas não parava, estava a gostar do efeito. Nos últimos momentos ficaram junto de uma banca, onde elas apreciavam quem lá trabalhava e ele o vinho que lá existia, para além de verificar que muitas garrafas eram deixadas ao abandono, grande parte já abertas. Como amigo do ambiente decidiu “reciclar” e levar algumas para casa, nessa altura apenas estavam presentes pessoas que trabalhavam no sector vinícola. As amigas faziam sucesso, apresentações sucediam-se, números eram trocados e ele findou a sua missão quando encheu uma caixa.
Quando abandonaram o convento já passava da hora de fecho, que naquela altura a única religiosidade que emanava era de templo de Baco.
Entraram novamente na viatura e seguiram para casa com um jantar combinado. Aí operou-se um pequeno milagre gastronómico e à mesa juntaram-se cinco pessoas que se conheceram (quase todas) numa exposição de vinho e acabaram a noite juntas. A boa disposição era rainha na hora em que o imprevisível e o inesperado demonstraram, que a vida não passa de um caminho que é trilhado no presente.


23/11/2008 (em conjunto com a publicação de In Vinu Veritas)

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Rosamar


Choviam navalhas do céu, respirou fundo arqueando os membros e reuniu os seus homens. Tinha que os ouvir, antes de se fazer ao mar.
- As condições são péssimas, ondas de seis metros e ouvi pela rádio que estamos em alerta Laranja. Quero saber a vossa opinião.
Seguidamente falaram alguns membros da tripulação.

- Mestre, somos pescadores experientes. Respeitamos o mar, mas não o tememos!
- Trabalhamos juntos há muitos anos, sabemos que podemos confiar uns nos outros.
- O nosso barco não é uma casca de noz, estamos protegidos!
- Todos temos as contas para pagar e parados não ganhamos dinheiro!
Olhou à volta, viu caras determinadas e talhadas a pedra.
- É a nossa sina! Ir sem certezas de voltar, mas parados não sobrevivemos. Tenho a hipoteca da casa para pagar e uma família para sustentar! Temos de ir!
Os treze vestiram os oleados e dirigiram-se para o cais. O barco que aguardava, tinha uma envergadura de aço resistente, trinta metros de estabilidade que descansava os espíritos mais inquietos. Posicionaram-se nos seus lugares, largaram as amarras e partiram rumo à massa de escuridão, apenas rasgada pela luz dos relâmpagos e pela claridade da chuva. A buzina soou pelo triste porto que via partir os filhos, sem poder dar uma palavra de consolo.
Apesar da fúria dos elementos, do rugir do mar e do impacto das ondas, o barco foi deslizando com a confiança de ser o mais resistente, o mais forte, o mais corajoso. Os pescadores mantinham-se em estado de alerta e atarefados, sabiam que apesar de protegidos pela forte envergadura do progenitor, o mar merecia respeito. As redes foram desemaranhadas, bóias posicionadas, o convés desimpedido.
A quarenta quilómetros da costa, o mestre que ia ao leme deu o sinal para começarem a largar as redes, lentamente estas começaram a ser engolidas, pela massa de água que se agitava caótica. A noite foi clareando, deixando-lhes a esperança que as horas de trevas não passavam de uma recordação tenebrosa.
Subitamente um cabo ficou preso no fundo, funcionando como âncora. Uma primeira vaga atingiu o Rosamar impiedosamente, o barco empinou-se orgulhoso, pescadores desesperados gritavam e corriam, a tentar vestir os coletes de salvação. Lançava-se o primeiro pedido de socorro.
- Mayday Mayday, estamos a ser atingidos por uma tempestade, o barco está prestes a virar-se. Coordenadas…
Enquanto se lançava o pedido de SOS via rádio, uma segunda vaga abatia-se violentamente. O navio gemeu com o impacto e os pescadores começaram a cair no mar desamparados, apenas a força dos membros e dos coletes os mantinha à tona. Gritou-se para abandonar a embarcação, afinal já não havia salvação possível.
À terceira e última vaga fundiram-se dia e noite, e o último pedido desesperado de socorro perdeu-se. O barco num estrondo ensurdecedor virou-se completamente. O mestre na cabine de comandos foi arrastado para as profundezas, juntamente com os pescadores que se encontravam mais próximos do local, onde o Rosamar perdeu o seu orgulho e se vergou à vontade de um elemento maior.


Dedicado a todos os pescadores.

Baseado no naufrágio do Rosamar em cinco de Dezembro de 2008. A quarenta quilómetros da costa da Galiza, três pescadores morreram, cinco foram dados como desaparecidos e cinco foram resgatados.