sexta-feira, 28 de novembro de 2008

No Mundo da Escrita Criativa, IV


Entrou na sala e antes de qualquer actividade, começaram a falar da Cais Letras e da possibilidade de enviar um texto, em que o tema fosse Festas/Festejos. Desta vez a aula começou com oito dos dez elementos (um chegaria atrasado, o outro faltaria à última aula do curso).
A tarefa de relaxamento consistia em desenhar um contorno de uma mão com uma ponta de feltro, numa folha de papel e depois à medida que ouviam a leitura de um poema de Sophia de Mello Breyner deviam escrever palavras que lhes despertassem a atenção. Alguém foi escrevendo:


- Sol - Planícies - Peso - Mundo
- Lua - Vida - Vento - Mar
- Florestas verdes - Brancas - Divina - Paz
- Elástica - Azul - Ruas - Escura
- Carne - Terra - Amor + forte - Sangue
- Sujas - Regresso - Cinza - Areia
- Paredes - Claridade - Asa - Alma
- Miragens - Vida Secreta - Montanhas - Mãos
- Coisa - Oiro
- Nevoeiro - Muros
- Verdade - Sombra - Luz - Fugitiva
- Ar - Sabor


- Têm dez minutos para este exercício. Escrevam várias frases ou uma frase que depois se converta num pequeno texto, em que existam algumas dessas palavras e comece:

Nas linhas da mão escrevo...

Palavras soltas e fugitivas, que me trazem inúmeras recordações de luz e escuridão, de prazer ou obrigação.
Leio vento, mar, chuva, lua, florestas, nevoeiro e areia, cores de oiro.
Leio terra, quebra, peso, muros, cores de cinza e prata.
Não sei o que escrever, mas sei o que sentir. A felicidade de escrever por prazer, a alegria por ouvir música, canetas a riscar o papel, palavras a ganharem corpo e substância sempre que sejam de tolerância.

Todos leram os pequenos textos de aquecimento. E após uma breve troca de ideias, rapidamente passaram para a próxima tarefa.

- Vou ler-vos sete expressões. Com elas terão que criar um novo texto em dez minutos.

Expressões a utilizar :

- Meias de vidro
- Comprimidos
- Guardas chuvas de chocolate
- Fazer festas no cabelo
- Caixa de cartão
- Tomar Duche
- Comichão no nariz

Ia a passear na rua e vi uma caixa de cartão, no interior: meias de vidro, guardas chuvas de chocolate, uma caixa de comprimidos.
Repentinamente senti comichão no nariz e tive que o coçar, desculpem é um tique nervoso quando não sei o que pensar.
Olhei à minha volta e peguei na caixa, transportando-a debaixo do braço dirigi-me para casa. Cheguei, vi-me ao espelho e fiz uma festa no meu cabelo, ou melhor na do meu reflexo. Não lhe consegui tocar, senti o frio do vidro e comecei a chorar. Lágrimas escorriam, o meu lábio tremia ligeiramente, sentia frio e calor, parecia que estava a delirar. Resolvi um duche tomar, afinal raio de moço já és grande e crescido demais para chorar.

Durante a leitura dos textos, chegou o elemento atrasado, mas o ritmo de leitura manteve-se vivo. Algumas frases despertaram-lhe a atenção e o debate de ideias prosseguiu.

- Passem estas folhas entre vós, se fazem favor. Foi deste pequeno conto que tirei as sete expressões com que criaram o vosso texto. Alguém quer ler?

As pessoas crescidas

“As pessoas crescidas fui-as conhecendo de baixo para cima à medida que a minha idade ia subindo em centímetros, marcados na parede pelo lápis da mãe. Primeiro eram apenas sapatos, por vezes descobertos sob a cama, enormes, sem pé dentro, e logo calçados por mim para caminhar pela casa, erguendo as pernas como um escafandrista, num estrondo imenso de solas. Depois tomei conhecimento dos joelhos cobertos de fazenda ou de meias de vidro, formando ao redor da mesa debaixo da qual eu gatinhava uma paliçada que me impedia de fugir. A seguir vieram as barrigas de onde a voz, a tosse e autoridade saíam apesar do esforço inútil de suspensórios e de cintos.
Ao chegar à altura da toalha aprendi a distinguir os adultos uns dos outros pelos remédios entre o guardanapo e o copo: as gotas da avó, os xaropes do avô, as várias cores dos comprimidos das tias, as caixinhas de prata das pastilhas dos primos, o vaporizador da asma do padrinho que ele recebia abrindo as mandíbulas numa ansiedade de cherne. Compreendi por essa época que tinha o riso desmontável: tiravam as piadas da boca e lavavam-nas, a seguir ao almoço, com uma escovinha especial. Aconteceu-me encontrá-las sob a forma de gargantilhas de dentes num estojo de gengivas cor-de-rosa escondidas por trás do despertador nas manhãs de domingo, a torçarem dos rostos quem se elas envelheciam mil anos de rugas murchas como flores de herbário devorando os lábios com as suas pregas concêntricas.
Já capaz pelo meu tamanho de lhes olhar para a cara, o que mais me surpreendia neles era a sua estranha indiferença perante as duas únicas coisas verdadeiramente importantes do mundo: os bichos-da-seda e os guarda-chuvas de chocolate. Também não gostavam de coleccionar gafanhotos, de mastigar estearina nem de dar tesouradas no cabelo, mas em contrapartida possuíam a mania incompreensível dos banhos e das pastas dentríficas e quando se referiam diante de mim a uma parente loira, muito simpática, muito pintada, muito bem cheirosa e mais bonita que eles todos, desatavam a falar em francês olhando-me de banda com desconfiança e apreensão.
Nunca percebi quando se deixa de ser pequeno para se passar a ser crescido. Provavelmente quando a parente loira passa a ser referida, em português, como a desavergonhada da Luísa. Provavelmente quando substituímos os guarda-chuvas de chocolate por bifes tártaros. Provavelmente quando começamos a gostar de tomar duche. Provavelmente quando cessamos de ter medo do escuro. Provavelmente quando nos tornamos tristes.Mas não tenho a certeza: não sei se sou crescido.
Claro que acabei o liceu, andei na faculdade, tratam-me por senhor doutor e há séculos que ninguém se lembra de me mandar lavar os dentes. Devo ter crescido, julgo eu, porque a parente loira deixou de me sentar ao colo e de me fazer festas no cabelo provocando em mim uma comichão no nariz que me tornava lânguido e que aprendi mais tarde ser o equivalente do que chamam prazer. O prazer deles, claro, muito menor que o de mastigar estearina ou aplicar tesouradas à franja. Ou rasgar papel pela linha linha picotada. Ou mostrar o sapo à cozinheira e vê-la tombar de costas, de olhos revirados, derrubando as latas que anunciam Feijão, Grão e Arroz e que na realidade contêm massa, açúcar e café.
Devo ter crescido. Se calhar cresci. Mas o que de facto me apetece é convidar a parente loira para jantar comigo no Gambrinus. Peço ao criado que nos traga duas doses de guarda-chuvas de chocolate e enquanto chupamos a bengalinha de plástico mostro-lhe a minha colecção de gafanhotos numa caixa de cartão. Posso estar enganado mas pela maneira como me fazia festas no cabelo, com olhos tão jovens como os meus, quase aposto que ela há-de gostar.

António Lobo Antunes in Livro de Crónicas

A leitura foi expressiva, muito por influência da voz que lia. E após a leitura falou-se sobre o tema do texto, a maneira como fora construído e as recordações que lhe estavam subjacentes.

- Bem, antes de seguirmos para intervalo. Dividam uma folha ao meio e façam duas colunas onde escrevam as palavras Telemóvel e Coração e por baixo de cada uma delas, cinco palavras que vos remetam para elas.

Telemóvel: Teclas-Som-Objecto de Controlo-Visor-Mensagens
Coração: Emoção-Sangue-Bombear-Vida-Partido

- Já está? Óptimo, construam três frases que contenham uma palavra de cada coluna. E dessas, escolham duas para ler em voz alta para a turma.

Ao som do sangue a brotar, começou a chorar.

A vida controlada por um objecto? É um bocado ridículo por vezes, não?

Mensagens foram trocadas. O Coração bombeava sangue, cada vez que via o visor a piscar.

Depois de todos lerem as frases, tiveram uns momentos de intervalo. Nesse intervalo alguém deu a ideia do grupo criar um blogue. Ouviram-se as opiniões de cada um e ficou decidido que era uma ideia viável e como tal seguiria para a frente. No pouco tempo restante, alguns foram beber um chá outros simplesmente fumar. Quando voltaram todos aos seus lugares, foi dada nova “ordem”.

- Para variar, dez minutos e o texto deve acabar na forma: “Isto é porque nem toda a gente tem coração mas toda a gente telemóvel” e conter as duas frases que leram em voz alta.

No início da relação gostava dela. Sentir o seu cheiro e odor, tocar no cabelo, olhar para as palmas das mãos. Mensagens eram trocadas, o coração bombeava sangue mais rápido sempre que via o visor piscar, mas quando não era ela sentia-se mingar.
O tempo passou, o vermelho mudou para rosa que evoluiu para cinza. O contacto foi perdendo intensidade, até ao dia em que foi traído. O coração parou, ponderou que cor usar e escolheu o negro para encarnar. Saiu de casa desvairado, quis com a vida acabar.
Correu para um parque isolado e desolado. Ao chegar, tirou do bolso uma pistola e deu um tiro no peito. Ao som do sangue a brotar, começou a chorar.
Toda a história para dizer, nem toda a gente tem coração mas toda a gente tem telemóvel, para aos adultos brincar e o amor enterrar.

Muitas palavras ganharam corpo e forma ao serem proferidas. O som percorria as paredes da sala e ressoava nos ouvidos. Até surgir o último desafio, “jogar” o cadavre exquis (cadáver delicado), que consiste em criar uma frase colectiva, sendo que o jogador desconhece o que o vizinho escreveu anteriormente. Na aula fizeram-se quatro perguntas e consequentes respostas, porém estas eram respondidas em papeis trocados, aleatoriamente. Fica um breve exemplo:

- Se eu fosse magro?
Era livre. Sem amarras e raízes.

- Porque é que a escrita criativa é terapêutica?
Porque uso sapatos 42.

-Como é viver e morrer em Las Vegas?
Demasiado embaraçoso.

- Qual é a solução para o problema da estupidificação geral?
Mandá-las para o espaço.


Soaram gargalhadas ao ouvirem-se certas perguntas e respostas. A boa disposição reinava e a percepção que a aula chegara ao fim surgiu quando se proferiram as frases habituais. Porém houve uma pequena mudança, nesta última aula cada um teve o direito de tirar um post-it da parede e ficar com ele, porém a frase de balanço, devia inspirar-se nesse mesmo post-it.

· Hoje das 19.30-22...

Quis brincar ao vento e que o grupo continuasse a enfeitar-se de festa

Frase do post-it:

“- Qual é a solução para o problema da estupidificação geral?
Mandá-las para o espaço.”

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

No Mundo da Escrita Criativa, III





Entrou na sala, às caras conhecidas juntava-se uma nova. Alguém viera fazer um artigo sobre as aulas de escrita criativa e nada melhor que experimentar, para depois poder escrever. Os nomes já estavam memorizados, apesar de por vezes um nome se perder no meio do rebuliço geral.
A professora falou da plasticina e o objectivo seria moldar o que quiséssemos, como nos tempos de infância.
- Ao mesmo tempo, escrevam pensamentos que vos passem pela cabeça, à medida que moldarem.
O toque maleável da plasticina, o cheiro, faziam-no recordar as tardes de menino passadas a descobrir um mundo de cor e tacto. Ao mesmo tempo a mente ocupava-se com questões de Vida e Morte, de acontecimentos que se passavam em todo o planeta.
- Escrevam várias frases ou uma frase que depois se converta num pequeno texto que comece:

Com um pedaço...

de plasticina volto à infância, fabrico sonhos, respiro fundo e vejo.
Sinto algo maleável, dúctil que pode tomar infinitas formas, ter infinitas cores.
A minha bailarina dança ao som do piano que toca melodiosamente e velozmente. Ups! Cansou-se de tanto bailar, ficou deformada, infeliz mas manteve a dignidade à medida que acordes mais melancólicos soaram e o Fernando entrou.

À vez os textos foram lidos e para além da troca de opiniões habituais, foi proposto que se falasse da plasticina e das possibilidades que esta abria. Tanto a nível dos sentidos, como de recordações.
- Trouxe-vos este pequeno texto. Alguém quer ler?

"O Brincador"


Quando for grande, não quero ser médico, engenheiro ou professor. Não quero trabalhar de manhã à noite, seja no que for. Quero brincar de manhã à noite, seja no que for. Quando for grande, quero ser um brincador.
Ficam, portanto, a saber: não vou para a escola aprender a ser um médico, um engenheiro ou um professor. Tenho mais em que pensar e muito mais que fazer.Tenho tanto que brincar, como brinca um brincador, muito mais o que sonhar, como sonha um sonhador, e também que imaginar, como imagina um imaginador...
A mãe diz que não pode ser, que não é profissão de gente crescida. E depois acrescenta, a suspirar: “é assim a vida”. Custa tanto a acreditar. Pessoas que são capazes, que um dia também foram raparigas e rapazes, mas já não podem brincar.
A vida é assim? Não para mim. Quando for grande, quero ser brincador. Brincar e crescer, crescer e brincar, até a morte vir bater à minha porta. Depois também, sardanisca verde que continua a rabiar mesmo depois de morta. Na minha sepultura, vão escrever: “Aqui jaz um brincador. Era um homem simples e dedicado, muito dado, que se levantava cedo todas as manhãs para ir brincar com as palavras”.
(de José Álvaro Magalhães)

A leitura foi bastante expressiva, e surgiu a hipótese de falar da definição de trabalho e brincadeira. A troca de ideias foi intensa, as palavras fluíam animadamente e assim foi introduzido o primeiro texto da aula (o outro fora de aquecimento).

Quando for grande não quero ser

uma árvore. Uma árvore que criou raízes, folhagens verdes e frondosas, um tronco robusto; onde habitassem pássaros e lagartixas; desse sombra aos humanos que viriam descansar no meu regaço e fazer piqueniques.
Até podia viver mais de 150 anos, ser uma árvore centenária. Pronta a ser vista e admirada, mas para quê?
Não quero viver eternamente!
Não quero ser estático como a árvore!
Não quero criar raízes a esta terra!
Mas quero:
Ser as nuvens que passam no céu!
Ser as ondas do mar!
Ser o sol que aquece!
Ser o vento que sopra!

Para não fugir do registo habitual, houve textos fantásticos. E a conversa prosseguiu, desta vez sobre os verdadeiros escritores e de como pode funcionar o processo criativo.
- Diz-se que “todos os escritores devem ter um quarto de Brincadeira”, para poderem criar livremente. Mas a melhor metáfora que ouvi sobre o papel do escritor foi: “ Eu sou como o vendedor de sapatos, continuo a trabalhar até surgir a oportunidade de vender.”

O intervalo apareceu sem aviso, uma vez que o tempo voava tão depressa, que era impossível dar por ele a passar. Alguns aproveitaram para fumar, outros para beber chá e conversar, ou pura e simplesmente estarem silenciosos e ouvir.
Quando a aula recomeçou, percebeu-se que à semelhança do exercício dos postais da primeira aula, iria decorrer um com pedras e que o objectivo final seria a obtenção de palavras que permitissem construir um texto.
As pedras foram circulando uma a uma, de mão em mão dando uma volta completa.

- Uma lista branca no meio da escuridão

- Flores do deserto

- Um pedaço
negro e leve

- Concha laranja e translúcida à luz

- Rectângulo creme e branco salpicado

- Argamassa e um pedaço de mosaico, combinação estrondosa

- Cristais roxos, lembra-me
o coração de Barcelona, metade neste caso

- Negra, oval e picada

- Pedaço laranja, escorregas-me dos dedos

- És mais leve que aparentas e mais áspera também

- Creme e branco: gelado de café e baunilha

- Agora façam como na primeira aula e sublinhem palavras ou frases que vós despertem a atenção. Para além disso escrevam cinco cheiros que tenham presentes e escolham um deles, para o incorporar no texto.

- Café - Canela
- Mar - Bolo de chocolate quente
- Castanhas assadas

- Muito bem, então já sabem dez minutos a contar.

Sentado no meio da escuridão, deu por si a imaginar um coração, bem metade neste caso, a outra ficara em Barcelona.
Enquanto a metade do coração que estava presente batia, segurava um gelado de café e baunilha, a combinação de cheiro e sabor mais estrondosa. Ao mesmo tempo imaginava o deserto e sentia saudades do pó, do calor, dos grãos de areia, da paisagem repetitiva e monótona. Do negro e frio da noite, das estrelas no céu, a leveza do riso. Das pedras roxas, cremes, pretas e laranjas, translúcidas ou opacas. Da paz, da serenidade e do silêncio... e deu por si a acordar agarrado ao coração partido em dois.

O dom da voz nesta altura era fundamental, tanto para se ler o texto, como para poder comentar os dos outros elementos do grupo.

- Bem lembram-se da brainstorming de substantivos? Vamos fazer uma de verbos, de preferência digam verbos que não comecem por de.


- lutar - amar - jogar - sonhar
- respirar - brincar - asneirar - furar
- trabalhar - comer - proibir - fazer
- assoar - fumar - espirrar - cobrir
- morrer - sorver - acalmar - correr
- matar - descobrir - fugir - fornicar
- ler - sair - saber - suicidar


- Dessa lista, escolham oito deles e transformem-nos em verbos inexistentes:

- desrespirar - desproibir
- desbrincar - desfumar
- destrabalhar - desasneirar
- desfornicar - deslutar

- Optem por cinco para criar frases com o verbo conjugado, e leiam três delas para a restante turma:

- Quero que desrespires, pode ser que te ajude

- Desmatei-me a destrabalhar

- Pará de desbrincares, desse modo serás feliz

-
Desproibo-te de brincar com o perigo

- Desfumei este belo cigarro enquanto via o fumo ser soprado

Frases hilariantes foram ouvidas, gargalhadas sonoras demonstravam a boa disposição reinante e a percepção que a aula chegara ao fim foi dada pelas frases habituais.


·
Hoje das 19.30-22...

Destrabalhei alegremente e brinquei animadamente.


Frase do post-it:

“Sentado no meio da escuridão, deu por si a imaginar um coração, bem metade neste caso, a outra ficara em Barcelona.”

In Vinu Veritas

Numa cidade de um milhão sentiu-se sozinho. Sentimento curioso, tantas almas presentes e esta sentia-se só. A alma divagava, num telhado observava as estrelas, o céu, as nuvens, o vento seu irmão.
O vinho tornara-o introspectivo como um copo de tinto encorpado, denso em que o sabor das notas de madeira, baunilha e especiarias ainda não se tinham soltado o suficiente. Resumindo, sentia-se uma merda! Não podia negar… o seu “Dark Side” era poderoso, fazia-o duvidar de si e de tudo em que acreditava. O seu optimismo que era uma das luzes brilhava intermitentemente, parecia uma vela sujeita ao vento, medrosa, tímida, frágil como se o mínimo sopro fosse suficiente para a apagar.
Não sabia porque escrevia. Escrevia, pura e simplesmente. O vento uivava, sentia-o nas suas faces, na sua mão direita um copo de vinho, na esquerda um cigarro que não era mais que um meio de atingir uma morte mais rápida. Parecia um contra-senso adorava a vida, a nada dava mais valor, por isso sabia que a sua morte só ia chegar quando esta estivesse inclinada, a retirar-lhe o último sopro.
Pensava em países, inúmeros, incontáveis…no desejo de escapar, fugir, fugir para bem longe, no silêncio e no absurdo das palavras. Não que amasse o silêncio incondicionalmente, mas por vezes sentia que necessitava dele para não ser submerso num turbilhão. Excesso de barulho atingia-o, mesmo no telhado palavras feriam-lhe os ouvidos, enquanto o vento soprava nuvens que encobriam estrelas.
Ao mesmo tempo sentia-se um peso excessivo, impossível de suportar. Duvidava que fosse boa ideia estar presente, queria eclipsar-se, na hora em que a melancolia o invadia e os elementos do silêncio se transformaram no ombro que amparava.

terça-feira, 18 de novembro de 2008

No Mundo da Escrita Criativa, II


Entrou na sala e olhou para as caras que já lhe eram familiares. Desta vez não seria necessário recorrer a profissões imaginárias, se bem que em certos momentos estas pudessem ser úteis, para recordar algum nome que se tivesse perdido.
A professora falou das flores e desta vez o objectivo, seria fazer uma flor com colagens, à semelhança do que acontecia na escola primária. Após dez minutos frenéticos.
- Escrevam as quatro frases, para cada um destes tópicos. Dessas dezasseis escolham uma, escrevam-na na flor e leiam em voz alta.

As
flores são...

Há flores que são....

Com flores...

Quero que as flores....


Desta vez as pobres mentes racionalistas deixaram de se interrogar. Dando um pouco de paz, aos corpos que as carregavam todos os dias, sem excepção. A professora continuava a marcar o ritmo:
- Vamos fazer uma brainstorming de substantivos. Digam todos os que vierem à cabeça, sejam eles físicos ou não, não interessa. O importante é termos uma grande quantidade.

Cada um e à vez ia dizendo os que se lembrava, a lista começou a aumentar, até ficar com este aspecto:

- mesa - gotas - relógio - creme
- solidão - credo - janela - mar
- quarto - como é que é? - ventoinha
- rua
- pescada - cheiro - gago - horas
- bola do Poder - paixão - chá - noites
- flor - ódio - caneta - ranho
- cor - alegria - papel - dança
- olhos - óxido - música - parabólica
- sol - ácido - raio - vento
- lábios - lua - chuva - furacão
- água


- Escolham sete substantivos da lista e escrevam uma frase que comece:

Escrevi a palavra:

- Solidão e fiquei na dúvida se era uma bênção ou uma maldição;

- Riso e lembrei-me desta sala;

- Paixão e lembrei-me que ela é necessária na nossa vida;

- Ácido e lembrei-me que há palavras mais destrutivas que o Ácido;

- Furacão e vi uma tempestade a formar-se ao longe e atingir-me;

- Lábios e lembrei-me da suavidade;

- Ondas e vi o mar, o vento, a areia...

-Dessas sete escolham três e leiam em voz alta.

As vozes ora mais graves, ora mais agudas soaram à vez. Enchendo a sala de sons que iam formando palavras.

- Para o texto devem escolher uma delas e desenvolvê-la como quiserem. O objectivo é que a frase apareça, inteira ou desconstruída. Têm cinco minutos, a contar.

Desta vez não houve surpresa, mas o tempo continuava implacável e o som das canetas a riscarem o papel fez-se ouvir.

“A maldição que o silêncio é às vezes faz-me desesperar. Querer ter alguém com quem falar, conversar, interagir e não a ter. Que raiva sinto! O desejar e não ter, o querer e não poder.
Mas bastou um segundo para ver a outra face do espelho. Estou rodeado e o som atinge-me como uma tempestade violenta, imerge-me e sufoca-me, faz-me querer dizer CHEGA! BASTA! Calem-se por favor, quero estar só. Ou melhor escrever a palavra solidão e pensar no que ela se pode tornar.”

Todos os textos foram lidos em voz alta. Para ele continuaram a existir alguns, com uma musicalidade extremamente apurada e a troca de ideias fluiu naturalmente.

- Vamos ouvir uma música da Mariza. Dividam um folha em duas colunas, numa escrevam palavras coloridas, noutra palavras sem cor. A ideia é ouvirem a letra e irem enchendo as colunas, com palavras da música.

- “Há palavras que nos beijam

Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca.
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.
Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto;
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.

De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas inesperadas
Como a poesia ou o amor.

(o nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído
No papel abandonado)

Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.

(de Alexandre O´neill)

As colunas iam-se enchendo, à medida que a melodia se repercutia nas paredes da sala, e nos ouvidos dos presentes.

Palavras coloridas
Beijam; Boca; Amor; Esperança; Poesia; Mar; Transportam; Amantes; Letra, Palavras
Palavras sem cor
Perde; Noite; Desgosto; Abandonado; Recusam; Silêncio; Morte

- Escolham uma palavra colorida e uma palavra sem cor. Escrevam duas frases, uma para cada.

A poesia é uma forma de expressão
A morte é fria

- Bem chegou a altura do intervalo, vamos aproveitar estes dez minutos. Vão até à rua e façam um exercício semelhante, substituam a música por palavras que leiam, oiçam ou vejam e tragam um quadro semelhante preenchido.

Desceram as estreitas escadas do prédio e desembocaram no largo Camões. Aí percorreram o espaço e as pessoas, ou simplesmente deixaram-se percorrer e o tempo passou rapidamente.


Palavras coloridas:
Clássica, Diesel, Milénio, Jazz, Rua, Norte, Arte, Livre, Pessoas, Beijinho, Diferentes, Verdade, Dancei, Comunicação, Descanso
Palavras sem cor:
Anos, Break, Nada, Dinheiro, Perdida, Frio, Roubar, Caixa, Estátua, Chão, Não me lembro, Pensar, Regras, Quebradas

- Muito bem, com estas palavras façam dois textos. Um em que usem apenas palavras coloridas e outro palavras sem cor. Têm dez minutos, e eu aviso-vos quando for altura de mudarem de texto.

O tempo não perdoava a mão ou a mente mais lenta. Tudo funcionava à lei do impulso e a tinta escorria e ganhava forma, preenchendo o papel.

Texto palavras sem cor

Apesar do dinheiro sentia-se perdido, olhava para o chão como se dele brotasse a solução dos seus problemas.
- Não me lembro em que momento isto me aconteceu. Mas ao recordar, cheguei à conclusão que as regras existem para ser quebradas.
Tinha roubado uma caixa, uma caixa cheia de dinheiro. Mas a consciência pesava como uma estátua de mármore e coração estava frio, gelado. Como aquela noite de Outono, em que cheirava a castanhas na Rua.

Texto palavras coloridas

O Jazz é um diesel que faz mover a imaginação
Dá-lhe Norte, tira-lhe o descanso
Movimenta-a livremente
Dá-lhe forma de comunicação.
As pessoas batem o pé, estalam os dedos
Seguindo o ritmo livre, em que a música
Muda as Ruas, como estas nos mudam a nós.


Textos voltaram a ser lidos. Sendo suposto tentar adivinhar se o texto, provinha da secção colorida ou sem cor. Por vezes enganos eram cometidos na avaliação e a boa disposição imperava.

- Vamos ouvir mais uma música, esta de Zeca Afonso. Para já quero que oiçam apenas.

- “Sete Fadas Me Fadaram

Sete fadas me fadaram
Sete irmãos me renegaram
Sete vacas me morreram
Outras sete me mataram
Sete setas desvendei
Sete laranjinhas de oiro
Sete piadas de agoiro
Sete coisas que eu cá sei

Sete cabras mancas
Sete bruxas velhas
Sete salamandras
Sete cegarregas
Sete foles sete feridas
Sete espadas sete dores
Sete morte sete vidas

Sete estrelas me ocultaram
Sete luas sete sóis
Sete sonhos me negaram
Aqui d´el rei é de mais
Sete setas desvendei
Sete laranjinhas de oiro
Sete piadas de agoiro
Sete coisas que eu cá sei

(de António Quadros)

- Tentem fazer algo parecido mas com um número à vossa escolha. Não interessa se rima ou não, apenas devem começar cada frase sempre com esse número.

Três minutos a contar
Três dedos a conversar
Três perguntas sem resposta
Três ondas sem dar à costa
Três guitarradas a soar
Três frases a destoar
Três mandalas por pintar
Três flores para recortar
Três dias sem luz
Três noites de escuridão
Três segundos de escravidão
Três pensamentos sobre o cuscuz
Três mistérios do escrever
Três respostas sobre o viver


- Para acabar só peço as duas pequenas tarefas. Escrevam uma frase que comece:

· Hoje das 19.30-22...

Ouvi falar de cor, sem cor de encontros imaginários e reais sem perder folhas.

E que neste post-it escrevam a vossa frase da aula, e a colem junto de todas as que já ali estão na parede.

“O Jazz é um diesel que faz mover a imaginação
Dá-lhe Norte, tira-lhe o descanso
Movimenta-a livremente
Dá-lhe forma de comunicação.”

CocoRosie - Beautiful boys

Antony :
Those, those beautiful boys
Those, those beautiful boys

Cocorosie :
Born illegitimately
To a whore, most likely
He became an orphan
Oh what a lovely orphan he was
Sent to the reformatory
Ten years old, was his first glory
Got caught stealing from a nun
Now his love story had begun

Thirty years he spent wandering
A devil's child with dove wings
He went to prison
In every country he set foot in
Oh how he loved prison
How awfully lovely was prison

Antony :
All those beautiful boys
Pimps and queens and criminal queers
All those beautiful boys
Tattoos of ships and tattoos of tears

Cocorosie :
His greatest love was executed
The pure romance was undisputed
Angelic hoodlums and holy ones
Angelic hoodlums and holy ones

Antony :
All those beautiful boys
Pimps and queens and criminal queers
All those beautiful boys
Tattoos of ships and tattoos of tears

All those beautiful boys
Pimps and queens and criminal queers
All those beautiful boys
Tattoos of ships and tattoos of tears

All those beautiful boys
Beautiful boys...
All those beautiful boys
Beautiful boys...

Those beautiful boys...

terça-feira, 11 de novembro de 2008

No Mundo da Escrita Criativa, I


Entrou na sala e sentiu um ambiente descontraído. O grupo era bastante heterogéneo, não havendo uma faixa etária dominante, antes várias faixas que criavam uma mescla entre a maturidade e a juventude.
A professora apresentou-se, falando da Mandala e de como esta seria importante, nos dez minutos que se seguiriam. O objectivo? Colori-la durante esse tempo, para deixar as preocupações do dia-a-dia de parte, relaxando as mentes menos descontraídas.
- Escolham uma das cores, com as quais pintaram a Mandala e escrevam quatro frases, para cada um destes tópicos. Dessas dezasseis escolham uma, escrevam-na na Mandala e leiam em voz alta.

O (cor escolhida) é...

Há (cor escolhida) que são....

Com (cor escolhida)...

Quero que (cor escolhida)....

Para as pobres mentes racionalistas estas pequenas tarefas, eram um pequeno contra-senso. Mas porque motivo estou a fazer isto, interrogavam-se. Sem contemplações, a professora ia debitando indicações:

- Agora cada um de vós, apresenta-se e escolhe uma profissão fícticia para os próximos minutos. De preferência fixem os nomes uns dos outros, se tal não for possível digam a profissão, quando se dirigirem a essa pessoa.

Passados curtos instantes, para além de dez pessoas comuns, existiam:

1 jardineiro
1 florista
1 cozinheira
1 ginasta
1 pianista
1 Chefe de Cozinha
2 bailarinas
1 Ilusionista
1 viajante

A risada e boa descontracção eram gerais, sendo o relaxamento o estado de espírito dominante.

- Temos aqui dez postais, a maior parte de quadros famosos. Gostaria que circulassem de mão em mão, e que escrevessem as primeiras palavras que vós viessem à cabeça, sobre cada um deles. O grupo impõe o ritmo, se estiverem a acumular postais estão a ser lentos; se os despacharem muito rapidamente, é porque estão demasiado acelerados.

Os postais foram circulando um a um, de mão em mão até darem a volta completa. Uma das pessoas foi escrevendo:

- O melhor de Klimt

- Dormia serena a dama cor-de-rosa

-
Estrelas no céu, iluminação na terra

- Três moinhos de vento, quem me dera ser como ele

- Istanbul, vermelho, azul, verde

- Venham cá que eu não vós faço mal...

- Lembra-me Miró, o “puto” artista

- Estrelas há muitas, pedras azuis também

- Vermelho na paisagem, beija-me amor

- Cores do mundo, traços de linearidade

- Já escreveram? Agora sublinhem palavras ou frases que vós despertem a atenção.

- Bem já todos sublinharam, não já? Então a partir de agora tem cinco minutos para fazerem um texto onde essas palavras apareçam.

A surpresa foi geral, mas o tempo era implacável. Triturava cada segundo sem remorsos, só se ouvindo o som das canetas a riscarem o papel freneticamente.

“Dormia serena, enquanto as estrelas no céu iluminavam a terra. Sonhava com o vento, gostava de ser como ele. Passar pelo globo terrestre, demorando-se um pouco mais quando se sentisse cansada.
Istanbul, Bucareste, Sófia... Europa, África, Américas, Oceânia e Ásia, queria passar por todo o globo, fazer 1,2,3..infinitos planisférios.
Ao mesmo tempo falar com as pessoas, venham ao pé de mim não vos faço mal, sou apenas o vento. Ver as pedras azuis, roxas, castanhas, amarelas, verdes. O vermelho na paisagem, as cores do mundo, traços de linearidade.
E no fim dizer beija-me Amor.”

Todos os textos foram lidos em voz alta. Havendo alguns excepcionais, pelo menos no entender dele. Palavras foram trocadas, ideias também e com esses momentos chegou o intervalo. Nesse intervalo enquanto a maioria das pessoas falavam umas com as outras, ele qual barata-tonta procurava uma folha sobre o bairro alto, onde se encontrava muita informação fragmentada. Infelizmente a busca revelou-se infrutífera, mas assim que a aula recomeçou a boa disposição voltou a invadi-lo rapidamente.

- Vamos fazer mais um pequeno exercício. Cada um rasga onze papéis e quando estes copos de plástico passarem à vossa frente, escrevem a primeira palavra que se lembrem relacionada com a que está escrita no copo. Deste modo e no final devem haver onze copos, cada um com onze papéis. Estes vão ser redistribuídos por todos, para que cada um fique com um papel de cada copo.

Os temas iam desde palavras compridas, curtas, passando por doces, dolorosas, acabando nas inventadas. Aqui fica um pequeno exemplo:


- Eu
- Tu
- Pena
- Azeitona
- Comprida
- Cáspite
- Água
- Sufocar
- Açúcar que derrete
- Sorriso
- Calipómia

- A partir de agora têm dez minutos para usar estas onze palavras num texto.

As canetas voltaram a ganhar vida, e o papel a gemer com o peso das mãos, que se agitavam velozmente. Parecia que estas tinham ganho uma vida própria, independente da mente que não fazia mais, que se deixar ir.

“Sufoco! Estou dentro de água. Não consigo sair. Estou perdido, tenho pena de mim! Pena? Ahahah, antes ódio por ter pena. Eu, tu, não tenhamos pena, antes ódio se não houver sorriso na Calipómia, que é como quem diz, a terra verde azeitona que habitamos.
Sinto uma cáspite comprida a enredar-me, estou perdido! Não! Estou salvo. Vou-me libertar do peso desta Calipómia que me oprime, que me esmaga, que me afasta do meu Eu.
Adeus!? Não! Até breve, para onde vou que é lado nenhum. O açúcar que se derrete, tornar-me-a mais doce também.”

Os novos textos voltaram a ser lidos à vez e as palavras foram ganhando voz e corpo ao sair de cada boca, que se abria e fechava numa sucessão ritmada e inconsciente.

- Bem, para terminar só peço mais duas pequenas tarefas. Que escrevam frases que comecem com forma:

Há dias em que...

- vivo
- sufoco
- rio
- pareço um robot
- sou mais eu
- mais irónico
- mais racional
- fantoche da mente
- alegre
- que me borrifo para os outros
- que quero fugir
- quero falar
- quero ouvir
- quero o silêncio
- quero o barulho

E que neste post-it escrevam a vossa frase da aula, e a colem junto de todas as que já ali estão na parede.

“Vermelho na paisagem, beija-me Amor.”

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Neve em Bagdad

Saiu do avião, e aspirou a brisa quente que corria sobre as terras de Zaratrustra. Era Inverno. Para ele como se estivesse no pico do Verão, naqueles dias em que temos de ir ao fundo de nós para vencer a inércia, que nos petrifica a existência.
Hordas de taxistas rodearam-no, queriam à força levá-lo para o centro de Bagdad. A muito custo conseguiu furar entre a multidão, chegou junto do amigo, que o esperava de braços abertos e sorriso nos lábios. Antes de pronunciarem uma palavra, abraçaram-se efusivamente, dando palmadas vigorosas nas costas, como se cada pancada provasse ao outro que estavam realmente juntos.
Dirigiram-se ao carro em passo rápido e elástico. Acomodaram a pouca bagagem do recém-chegado e partiram para os arredores. Após as primeiras palavras banais semi balbuciadas, começaram a falar de um modo um pouco agressivo. Parecia que a paisagem que os rodeava, transferia para o carro toda a sua energia. E aquelas manifestações iniciais, não passavam de uma mera máscara, que podia funcionar noutros locais do planeta, mas não aqui. Não em Bagdad!
- Então, o que te traz cá?
- Inscrevi-me numa ONG, tenciono ajudar na reconstrução do Iraque.
- És louco. O tempo vai-se encarregar de acabar com o teu idealismo.
- És sempre o mesmo pessimista, qualquer que seja o projecto em que te envolves. Afinal porque é que vieste?
- Muito simples. Para garantir que o meu governo ganha o suficiente com esta guerra, para contrabalançar a péssima imagem que deixamos na ONU e todo o dinheiro empenhado no esforço militar. Como sabes, as nossas reservas petrolíferas estão a acabar e para além disso, há que expandir o nosso poder.
Enquanto o amigo proferia este discurso elaborado e repetido, aquele pedaço de terra dramática e torturada, desfilava como pano de fundo. As pessoas, mães, pais, filhos que sofriam como ninguém o peso do conflito, provocaram-lhe inicialmente comoção e depois uma raiva crescente, que não parava de aumentar, a cada quilometro percorrido, a cada face, a cada olhar.
- Mercenário! Não passas de um reles funcionário de governo, que só vê cifrões à frente. Que desilusão, conheço-te há muitos anos, mas nunca esperei isto de ti.
- É assim o mundo capitalista em que vivemos. Ou fazes parte da máquina, ou és triturado por ela.
- Então prefiro ser triturado por ela! Deixa-me aqui!
- Não sejas idiota. Estás num cenário de guerra, caso tenhas resolvido ficar na ignorância nos últimos anos.
- Não me interessa. Como te disse, antes ser torturado ou assassinado, do que pactuar contigo. Tens as mãos sujas de sangue, deste conflito hediondo.
- Muito bem, como queiras. Não digas que não foste avisado. Ainda vais engolir as palavras que proferiste.
O carro parou no meio de um bairro, parcialmente destruído. Tirou a pouca bagagem que tinha e bateu com a porta estrondosamente. Viu o “amigo” gesticular freneticamente e a partir prego–a–fundo, deixando atrás de si uma nuvem de fumo.
- Foda-se, tanta estupidez concentrada numa pessoa, incrível. E eu que o conheci, numa altura que ambos defendíamos os mesmos ideais. Que lavagem cerebral lhe fizeram.
Começou a percorrer o bairro melancolicamente, reparando em pouco ou nada. Olhares interrogativos, indiferentes, curiosos, cheios de ódio, desfilavam na cara daquele povo. Até que um primeiro iraquiano o abordou. Estancou abstracto, e nas poucas palavras que consegui pronunciar, disse que estava perdido, que não tinha muito dinheiro, mas que o daria se alguém o ajudasse. Passados uns momentos, apareceu um segundo iraquiano que passava de mota.
- Não tenho nada contra ti. O teu povo, acabou por salvar-me a mim e aos meus irmãos da opressão. Mas aconselho-te a saíres deste bairro comigo, estás num bairro de maioria sunita e como deves saber, não és muito popular.
- Estou nas tuas mãos, leva-me para onde achares que é mais seguro.
- Aqui não existem locais seguros, mas vou levar-te para minha casa.
- Obrigado, não sei como agradecer.
Os seus olhos começarem a brilhar e quando deu por si, parecia uma criança pequena a chorar. Todas as emoções das últimas horas abateram-se sobre ele e a fuga foi o choro. Subiu para a mota e arrancaram. Andaram cerca de 40 minutos (para ele poucos segundos) e quando desapearam, viu que estava numa zona residencial, menos destruída. Com um pouco de imaginação, via flores e jardins, mas ao menos via pessoas na rua e crianças a correr.
- Aqui estás mais seguro, esta é a outra margem do Rio Tigre. Mais pacífica, sem tantos atentados e banhos de sangue, onde as pessoas, apesar de todas as privações, tentam viver a sua vida o mais dignamente possível.
- Antes de vir, informei-me sobre a situação actual mas não me guiei pelos noticiários, porque esses, obviamente, só falam dos atentados, número de mortos, desmembrados, etc...
- Os noticiários iraquianos são iguais. Só mortes e mais mortes, acho que existem alturas em que não me sinto humano. Se não fossem os meus filhos, acho que não passava de um robot.
Os miúdos corriam na rua alegremente atrás de uma bola de trapos, a mulher notava-se que estava grávida, esperava-os na ombreira da porta. Inesperadamente, pelo menos para ele, não começou a gritar com o marido, antes calmamente apontou, como se pretendesse saber quem era, e o que estava ali a fazer. Descalçaram-se e entraram na habitação, uma humilde casa de rés-do-chão com duas divisões. Uma era um misto, sala-cozinha; a outra, um quarto para o casal e para os dois filhos, separado ao meio por uma cortina.
Sentaram-se no chão, numas almofadas, de pernas cruzadas e serviram-lhe um chá. De olhos fechados, sentiu o odor que se depreendia da superfície, saboreando aquela frescura da menta. Quando voltou a abri-los, os filhos do casal estavam especados a olhar para ele, com aquela curiosidade infantil, e o sorriso cândido.
- O que te trouxe a Bagdad, e porque motivo estavas naquele bairro?
Contou-lhe toda a história, que o levara desde o seu país até ao momento em que fora encontrado no bairro. Quando acabou a descrição, ficou calado a meditar sobre as suas opções para o futuro. Sentiu que não podia ficar naquela casa indefinidamente, apesar da boa recepção, sabia que estava a ser um peso excessivo. Por isso, decidiu na próxima manhã dirigir-se à ONG e falar com os responsáveis para saber qual o papel a desempenhar no futuro.
- Agradeço tudo o que fizeste por mim. Toma este dinheiro, não é muito mas é tudo o que tenho de momento. Apenas te peço que amanhã me digas como chegar à ONG.
- Para nós é muito dinheiro, não posso aceitar. Alá diz-nos que devemos ser caridosos, para os mais fracos e desprotegidos. Naquele momento eras o mais fraco, não fiz mais que a minha obrigação.
- Aceita, por favor. Pela tua mulher, pelo teu filho que vai nascer, se não o fizeres por ti, fá-lo por eles.
- Se pões assim a situação, aceito. Mas imponho a condição de amanhã levar-te.
Sentou-se no limiar da entrada e acendeu um cigarro, oferecendo outro ao seu salvador, o sol descia sobre a linha do horizonte, espalhando tons rosa-alaranjados. A temperatura continuava elevada e bandos de pássaro esvoaçavam no céu.
- Anda, vamos jantar. Amanhã é um novo dia.
O jantar trouxe-lhe sabores exóticos, apesar de não haver muita variedade, a comida estava cheia de sensações. Comeu com imenso prazer, e sentiu que o cenário apesar de negro, não era tão escuro como o Ocidente o pintava.
No dia seguinte, ainda o sol não tinha nascido, já estavam a caminho. Ruas quase desertas patrulhadas por blindados dos EUA que, apesar de todas as normas de segurança, não os chegaram a interpelar. Chegaram ao edifício da ONG, e aí sim, a 100 metros de distância já havia uma zona delimitada de segurança, cheia de arame farpado e soldados a bloquear a entrada. Apearam-se da mota conforme lhes mandaram, entregaram o passaporte e o documento que comprovava que realmente ele era um membro da organização. O iraquiano não pôde entrar, e no meio de tanto preconceito, deram um abraço sentido, um abraço de verdadeiros amigos, irmãos de coração.
Entrou e ficou à espera de ser atendido por algum superior. Como chegara a horas impróprias, teve que esperar num corredor, onde acabou por adormecer. Já passava das 8 horas quando alguém lhe deu um toque no ombro, e disse que podia entrar para o gabinete. Acordou estremunhado e lá se arrastou, pronto a ouvir e a obedecer às ordens que recebesse.
- Bom dia, sente-se. Antes de mais quer um café? Água? Chá? Saiba que é um prazer recebê-lo na nossa organização. Um activista como você, já com créditos firmados, confesso que fiquei um pouco surpreendido quando falou comigo a voluntariar-se.
- Não vejo porque motivo tanta surpresa, sou um homem de causas. Acredito que certas acções podem mudar o mundo em que vivemos. E quantas mais pessoas puxarem no mesmo sentido, melhor. Confesso que estava um pouco cansado de ser activista no meu país, sentia-me longe da frente, longe dos problemas, enfim, um inútil.
- Não diga isso! Você é de longe dos activistas mais valiosos que existem espalhados pelo planeta. A comunicação social adora-o, as pessoas, as massas ouvem-no com deleite. Digamos que tem uma aura de credibilidade e carisma inigualáveis.
- Seja. Agradeço os elogios, mas gostava de saber em que posso ser útil. Sinto-me motivadíssimo para entrar no terreno, dar o melhor de mim para tentar melhorar a vida das pessoas deste país.
- Bem, muito sinceramente, apesar de chegar hoje ao Iraque, gostava de fazer de si o meu braço direito. Ficaria responsável pela zona Bassorá, que é uma zona extremamente complexa, mas acredito que com as suas qualidades é a melhor pessoa para o posto.
- Muito bem. Quando devo partir?
- Se não se opusesse, gostaria que viajasse hoje mesmo. Ainda é um desconhecido, isso é uma vantagem. Vamos aproveitar, assim pode viajar incógnito como qualquer pessoa comum. Vai partir às 2 da manhã da estação de autocarros e faz a viagem durante a noite, que lhe parece?
- Perfeito. Isso quer dizer que tenho o resto do dia livre, não?
- Sim, mas por razões de segurança não quero que saia do edifício. Quanto menos pessoas o virem, melhor. Aproveite para descansar, começar a ler os dossiers...
O dia passou sem grandes novidades, foi-se arrastando. Sentia adrenalina pura por estar prestes a realizar a maior obra da sua vida, só esperava pelo momento de chegar a Bassorá. Por volta da meia noite, foi escoltado até à estação dos autocarros, aí 100 metros antes, abandonou a formatura, tentando denunciar-se o menos possível. Comprou o bilhete e aguardou a hora de embarcar.
O autocarro acabou por atrasar-se, nessa altura fazia frio, muito frio em Bagdad, parecia que alguém tinha mudado a latitude da cidade. Finalmente, o autocarro chegou e as pessoas começaram a entrar e acomodar-se nos assentos. Quando finalmente ia pôr o pé no degrau, o motorista sem aviso prévio fez-se explodir. Chamas deflagraram em todas as direcções, o autocarro foi completamente reduzido a sucata. Um fumo espesso negro subia, ao mesmo tempo que flocos de neve começaram a cair pelo céu de Bagdad.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Os tesouros da Dona Aldina


Para os lados da casa de Fados Luso, existe a Mercearia do Sr. António, a mais antiga do bairro, garante uma freguesa.
Nesse local e à vista de todos, encontra-se muitas vezes um dos tesouros mais bem guardados de Lisboa, a Dona Aldina. Alfacinha de gema, vive há 78 anos no Bairro Alto (quase tantos como os que tem de existência). O olhar humedecido transmite uma alegria infantil, e o rosto uma personalidade calorosa e comunicativa. Com a voz alegre e contagiante, conta histórias que nos transportam para o passado do bairro, da cidade e do país. Ficando-se com a sensação que olhamos a história nos olhos e lhe escutamos a voz.

Começa por relatar-nos momentos do presente, em que o bairro já não é como foi, muito barulhento e sujo devido aos bares que se multiplicaram como copos. A tristeza pelas vizinhas, que quase desapareceram. O gosto de ir à mercearia, falar com as pessoas que a frequentam. Ao passar este momento inicial, e ganhando mais confiança começa a abrir o baú da memória. Pequenos fragmentos de luz da história do bairro saem lentamente: as varinas, as prostitutas e os marujos, os talhos, as famílias, as escolas, as tavernas, as crianças e os boémios. Até que subitamente, e devido ao Grémio Lusitano, surge uma revelação mágica.
Os seus bisavós tinham uma taverna, na Rua Luz Soriano número 19, que era frequentada por poetas, pintores, escritores e até pelo próprio Rei D.Carlos e pelo príncipe herdeiro. Como muitas vezes o destino gosta de pregar partidas, um dos filhos do casal, o mais velho, na mocidade fora maçon. E na sua casa fizeram-se reuniões secretas de maçonaria, onde os presentes se encontravam sempre de cara tapada, de modo a esconder a identidade. Em certo momento, foi-lhe oferecida a “honra” de assassinar o rei, acabando por recusar a proposta.
O seu interlocutor manifestava uma expressão de enorme surpresa, só pensado na sorte e fortuna, de ouvir ao vivo um relato tão singular. Com o melhor dos modos, acabou por ajudá-la a transportar as compras para casa, e decidiu passar pela Rua Luz Soriano.
O que viu, deixou-lhe a certeza que o tempo tudo transforma, e se não forem as pessoas a contar muitas vezes as histórias das pedras, não serão estas a contar-nos a história dos homens.