segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

A Toupeira e o Rato Voador


Sentado num auditório cheio, sentiu-se sozinho. O orador fazia uma lavagem cerebral sobre uma das empresas que patrocinara o evento. O poder dos patrocinadores sempre o impressionou. Fornecem o dinheiro e ficam com o poder de se envolver no evento, tornando-o aborrecido, enfadonho, vazio. Nesta altura perguntou-se o que fazia ali. A mente assemelhava-se a uma película de cinema, passando imagens velozmente. Pensava no tempo perdido inutilmente, na “obrigação” de estar preso e voou na história.

A Toupeira e o Rato Voador

Na terra verde azeitona da Calipómia existiam duas criaturas. Uma toupeira que vivia no interior da terra, sempre a escavar, a usar outros sentidos para além da visão, no meio da humidade, dos vermes, da escuridão. Por ironia não havia animal mais limpo, o pelo e as suas garras estavam sempre brilhantes, apesar de toda a imundice em que habitava. E o rato voador, este tinha toda a liberdade do espaço, o céu era o limite. Voava e vagabundeava conforme lhe apetecia, mas não tinha amigos, o pelo apesar de limpo tinha sempre um cheiro desagradável, afastando outros seres.
Uma noite a toupeira veio à superfície, gostava de sentir a brisa, o vento nas faces, sonhar com a luz que não podia suportar e principalmente com a possibilidade de voar. Mesmo a sonhar o focinho, perscrutava a escuridão à procura de qualquer indício de predadores ou outros seres. Gostava de saber todas as novidades que aconteciam fora do seu habitat e por isso sempre que podia entabulava conversa. Repentinamente o seu olfacto apurado, detectou um cheiro bastante desagradável, mas como a curiosidade era superior ao desconforto, deixou-se ficar alerta.
Passados poucos segundos, vindo do céu o rato voador pousava as suas patas no solo. Estava com um ar desolado e alienado, lentamente dirigiu-se para um tronco. Sentou-se e começou a chorar, com a voz embargada pelas lágrimas.
- De que me serve voar, conhecer todo o mundo, saber todas as novidades se não tenho amigos? Poder sentar-me e conversar, desabafar, partilhar as minhas histórias e ouvir as de outrem. Haverá algo mais gratificante?
A toupeira ouviu o apelo de solidão e apesar de renitente inicialmente, aproximou-se tocando-lhe. Este lentamente parou de chorar, limpou as lágrimas e levantou a cabeça, à sua frente estava a toupeira de olhos semi-cerrados, a olhar. Ficou confuso, nunca nenhum ser se aproximara tanto de si. Vencendo a surpresa inicial, articulou finalmente.
- Que fazes aqui? Como consegues estar tão próxima, apesar do meu odor pestilento?
- Porque sou curiosa por natureza. Gosto de falar com outros seres, saber novidades do mundo e nunca vi nada que se assemelhasse, um rato voador.
- Pensas então que sou um bicho raro, que deve ser admirado?
- Antes de admirado, respeitado. Não te conheço, não te posso admirar apenas por voares. Ainda para mais se foi um dom com o qual nasceste?
- Sim foi…és ponderada, racionalista e bastante serena.
- E sonhadora, optimista e curiosa…
O rato durante uns momentos calou-se e fixou o olhar no vazio, como se mergulhasse em profunda introspecção. De repente voltou a si.
- Toupeira, vives nas profundezas e és um ser feliz. Eu por meu lado vivo com toda a liberdade e sou uma imagem tua mas assimétrica. Ensina-me a ser como és!
- Ensinar-te a ser feliz? Isso não existe, nem é possível de ensinar. O que posso fazer é passar algum tempo contigo e ensinar-te a ver a felicidade em pequenos momentos, em pequenas coisas, coisas simples e diárias. Depois de observares, trilharás o teu caminho.
Iniciou-se uma nova fase na vida de ambos, mas principalmente do rato voador. A pouco e pouco foi descobrindo os pequenos prazeres. A aurora, as gotas de orvalho nas folhas, os reflexos nos charcos, o vento a murmurar entre árvores, os anéis dos cogumelos, o pôr-do-sol e nascer da lua, o silêncio quebrado pelo riso, pequenas conversas. Tinha pela primeira vez um amigo, ou melhor amiga, neste caso. Finalmente podia relatar a alguém todas as suas experiências, demonstrar a sua inteligência e aprender a ser paciente e mais atento. A toupeira, ouvia histórias de países e reinos distantes, fechava os olhos e com as descrições divagava com a mente. A relação dava pequenos passos, tornava-se forte como uma parede de titânio resplandecente em tons de prata. Certo dia, a meio de uma conversa.
- Toupeira, eu sei o quanto sonhas com voar. Queres voar comigo, para saberes qual a sensação?
A toupeira inicialmente ficou sem reacção. Não acreditava no que ouvia. Voar? Seria verdade? A mente carburava a todo o vapor, debitava pensamentos soltos. Sim, não, concretização de um sonho, medo de sentir a “luz” e não se voltar a adaptar à escuridão, amizade, dúvida…
Vendo que estava confusa, o rato prosseguiu.
- E para te sentires mais à vontade que tal uma permuta? Passas um dia comigo a voar, desculpa, noite no teu caso. E eu vou contigo para debaixo de terra, para as profundezas.
As dúvidas finalmente dissiparam-se, qual nevoeiro que é rasgado pela luz.
- Amadureceste, estás pronto para ser feliz, ou melhor para teres momentos de felicidade na tua vida. Aceito, afinal nada melhor que experimentar-mos o meio em que vivemos para sentir se ele nos molda, ou se molda conforme a nossa vontade.
Nesse dia a toupeira levou o rato para as profundezas, para a escuridão, para as trevas. Mostrou-lhe que mesmo num meio imundo existe beleza. A perfeição das galerias escavadas por ela e pelas suas irmãs, os formigueiros que trabalhavam com a precisão de um mecanismo de corda, os charcos e as grutas onde habitavam estranhos seres, que nunca viram a luz. Raízes e plantas de odores delicados e sabores adocicados. As horas passaram e o dia foi dando lugar à noite, rato e toupeira voltaram para superfície, onde encontraram uma noite de verão auspiciosa. Sentiram a aragem suave que corria e deixaram a terra, voaram juntos durante horas, qual estrelas cadentes. Do céu a toupeira via como o mundo se tornara amplo, livre sem peso; voaram ao lado de bandos de pássaros, furaram nuvens, sentiram os aromas e os sons da noite, percorreram distâncias.
Até que do nada ouvi-se PUM! PUM! Um tiro perfurou o rato voador e a toupeira simultaneamente e começaram a cair em queda livre. Felizmente no meio da dor e do pânico, conseguiram aterrar violentamente no meio da erva. Percorreram metros aos trambolhões, até se imobilizarem finalmente, no chão jaziam toupeira e rato voador. Momentos passaram a toupeira voltou a si e apesar de trôpega e a sangrar abundantemente arrastou-se até ao rato voador. Quando o viu soltou lágrimas, ele ainda respirava, mas com muita dificuldade.
- Fala comigo! Estou aqui! Hoje fizeste-me ver a luz, já não vou morrer na escuridão!
O rato voador, apesar da voz arfada e pesada, sorriu e respondeu.
- Eu hoje conheci a escuridão que me permitiu finalmente ver, que vivi na luz! Graças a ti vi-a finalmente!

Porque a vida é como é! Segue o seu curso natural, impávida e serena, alheia à vontade de cada ser.


Final Versão alternativa

A noite foi perdendo intensidade, o negro foi-se tornando azul-escuro quase negro, até começar a amanhecer. A toupeira fez sinal para descerem, estava na altura de voltar para a escuridão. Pousaram as patas no chão e olharam-se profundamente.
- Fizeste-me ver a luz! Mesmo que viva na escuridão, vou guarda-la no coração.
- Sempre vivi na luz mas sem ver a escuridão, nunca o soube. Graças a ti vi finalmente a iluminação.

Dedicada a todas as crianças existentes em cada um de nós. Por vezes é bom haver finais felizes.

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