terça-feira, 15 de abril de 2008

Preparação

Já o sabia com antecipação, quer dizer não restavam dúvidas o paciente ia acabar por morrer, a questão que restava era apenas quando, isso ninguém podia prever, o corpo humano apesar de todos os avanços da medicina continuava a surpreender os profissionais de saúde quase todos os dias.
Neste dia, o seu turno era o da noite, à partida mais descansado e bem renumerado, mas com a agravante de viver ao contrário do seu amor, que tinha um horário de trabalho regular. E que já não a veria, porque ao chegar a casa estafado, não a teria nos seus braços para o reconfortar e perguntar: “Então amor como correu o teu dia?”, beijá-lo e deixar o seu corpo descansar.
Dirigiu-se para o hospital que a esperava, impávido e sereno, habituado a que diferentes vidas e sentimentos convergissem nele, profissionais de saúde e pessoas comuns que tanto choravam, como riam, que sofriam em silêncio ou praguejavam a sua má sorte, vidas que acabavam e que começavam, felicidade e tristeza, num único espaço que via tudo e guardava para si religiosamente e em silêncio o que acabava de presenciar. Entrou nesse espaço que já lhe era familiar, já fazia parte dela e sentia-o com um misto de serenidade e orgulho, afinal fora para isto que estudara durante sensivelmente um terço da sua vida, cumprimentou as caras familiares, e preparou-se para mais um “dia” de trabalho.
A noite decorria como tantas outras, as tarefas mais complicadas já não eram mais do que meras rotinas, tal já era a sua desenvoltura como profissional que gostava do que fazia. As horas passavam a voar, ela sabia que o fim de mais um “dia” de trabalho se estava a aproximar, e bastaria um par de horas para ir repousar o seu corpo cansado. Porém algo de excepcional quebrou a normalidade, eram quatro da manhã, a sua colega estava noutra ala do hospital, ela entrou no quarto onde estavam três pacientes, aproximou-se da cama de um deles, abriu a cortina e viu o monitor a ZERO. O silêncio da noite envolvia-a como uma mãe envolve o filho, mas esta filha sentia-se desconfortável com a aura de silêncio e de escuridão que a envolvia. Não que nunca tivesse presenciado a morte, mas nunca a presenciara tão calma, fria e silenciosa, este facto abalou-a no seu íntimo e sentiu o peso da mortalidade, como nunca antes sentira. Olhou à sua volta, continuava sozinha, com os restantes pacientes que continuavam silenciosos, como se não estivessem presentes, o seu olhar rodopiou, sentiu uma breve tontura, mas recuperou o sangue frio que caracteriza os inatos, e aguardou a chegada da sua colega. Quando esta finalmente se aproximou perguntou-lhe: “Que se passa? Tás pálida?”, ela um pouco contrariada respondeu que se ela tivesse dez minutos sozinha com um morto naquele ambiente também era provável que estivesse.
Com a companhia da colega preparou o corpo já inanimado, coisa que já tinha feito antes, mas durante uma tarde, cheia de luz e barulho em seu redor e sentiu-se mais reconfortada por estar acompanhada nesta hora onde sentiu a fugacidade da vida em toda a sua dimensão.

12/04/08 (dedicado a uma amiga muito especial)

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